sexta-feira, 30 de março de 2012

Fio de história

Minha avó tinha os cabelos longos, bem longos mesmo e ela os penteava com esmero. Eu gostava de observá-la e, hoje, eu penso que ela penteava os cabelos como quem penteia lembranças. Depois, enrolava-os num coque na altura da nuca, colocava os óculos, puxava os fios que ficavam no pente e os enrolava como um novelo antes de jogar fora.

O ritual todo era meticuloso. Primeiro, desembaraçar pensamentos. Depois, pentear lembranças. Em seguida, enrolar como quem preserva e enfeita a memória. Por fim, descartar o que não precisa ficar na história.

Outro dia, enquanto lia um livro, distraidamente, comecei a desembaraçar, pentear e enrolar os cabelos. Quero dizer, outra história. No final, com os fios soltos, joguei fora a melancolia, porque esta não merece fazer parte da memória. O gesto trouxe minha avó para a cena e eu me senti amada.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Ida e volta

Ia muito tranquila para minha aula de Yoga. Estava com tempo, mas resolvi encurtar o caminho, passando por uma rua desconhecida e que eu acreditava terminar exatamente onde eu ia. Foi um erro. Acabei voltando ao ponto de partida. Tempo, gasolina e humor perdidos. Somados a isso, sete minutos de atraso. Falha gravíssima para quem pretendia chegar na hora.

Ainda do lado de fora, ouvi as vozes entoando o mantra. Fiquei com raiva por estar perdendo um momento que considero precioso. Ao sentar-me, a respiração estava alterada pela pressa e raiva. Respirei fundo e passou.

Depois de escrever o texto anterior, percebi o que eu precisava aprender. Claro, porque nada, absolutamente nada acontece por acaso. Quis encurtar o caminho e foi algo preciptado, assim como queria encurtar o tempo de aprendizado. Ainda bem que tive o insight de que o que precisa ser andado, precisa ser andado. E se for com alegria, melhor.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Pensa que e fácil?

Pensa que é fácil deitar-se, esticar as pernas e elevá-las bem retas a um ângulo de 90º? Pensa que é fácil repetir, repetir e, já na terceira vez, perceber que os músculos não obedecem como antes? Pensa que é fácil esquecer a frustração e seguir para outra repetição e, de novo, perceber que também não dá conta como a moça lá na frente? Ah, como é difícil começar algo novo... Porém, se não é fácil, um fato é incontestável: quem diz isso é o ego.

Estou nessa. Terceira aula de Kundalini Yoga e a sensação de que vou levar meses para dominar a arte de respirar, mover-me e me integrar com a leveza que vejo e desejo. Mas quem mandou eu querer a perfeição num estalar de dedos – ou de vértebras? O ego.

Calar o ego que quer capricho não é fácil. Mas também não é difícil. A incoerência se deve ao fato de que os ganhos são imediatos. Apesar da sensação de estar desajustada, o prazer do pós-movimento é tão mágico que anima e a gente quer mais, vai lá, tenta e – alegria, alegria – faz!

Então, eu estava lá, sintonizada com a busca da perfeição e pensando que iria treinar em casa, repetir, repetir, até conseguir o movimento perfeito. Já ia embarcar nesse plano, quando um insight calou o ego. Veio lá de dentro uma vontade louca de dançar, de rir, de não ligar pra nada, uma vontade que, por si só, já era o prazer da dança, do riso, da liberdade do recomeço. Senti a alegria de rever uma querida amiga de infância. E era eu mesma. Descobri onde me reencontrar, descobri que a energia criadora da infância está em algum lugar. Ali, até o ego é meu amigo.

É assim: a aula começa com um mantra, segue por uma sequência de posturas (que aqui eu chamei de repetições), há uma pausa entre cada uma delas, para que sejam percebidas as respostas do corpo. Depois, faz-se um relaxamento, seguido de meditação e do mantra final. É de se esperar que, em determinado momento, as respostas venham de profundezas inatingíveis pela mente acelerada.

E eu estava ali, respirando, repetindo, barriga para fora, barriga para dentro, olhos fechados, coluna ereta, respiração lenta e profunda, tudo e nada, claro e escuro, respiração do fogo, pensamentos que vem, sentimentos que vão, aprendiz que se cala, sabedoria silenciosa, música, vento... Eu estava entregue. Era de se esperar que novas respostas viessem. Interessante é que vieram como brincadeira.

Agora, deixo-me ser para aprender num ritmo novo, passo a passo. E com alguns tropeços. É boa a sensação de estar mais íntima de mim.

Pensando bem: Pensa que é fácil!

quarta-feira, 21 de março de 2012

Voltando para casa - O começo

A voz soa tranquila: "Perceba sua respiração, sinta o ar fluindo para dentro e para fora... Não interfira, apenas perceba." Lanço-me nessas profundezas de alvéolo inflado. É um passeio escuro, os olhos estão fechados e guardam os últimos resquícios da luz amarelada da sala. Há um cheiro suave de jasmim vindo do lado de fora e o vento está fresco neste final de tarde. Porque eu sou dada a viagens mais elevadas, penso que o ar perfumado e quase úmido refrigera minha alma. Depois, penso que o momento podia esticar-se nesse prazer de vazio escuro. Imagino luzes alongando-se a partir de uma esfera azulada que já não é mais Terra nem nada. Há apenas o escuro fresco, o perfume e a sala.

A sensatez exclama: "fixe sua atenção no ponto entre os olhos." Sim, eu posso. Faço mais, esqueço o jasmim e não expiro pela boca. Tem que ser pelo nariz. A boca viciada em puxar o ar com avidez, enquanto o corpo estirava-se na piscina, tem que se acostumar com o novo ritmo. Essa não é uma atividade física. A sensação boa se espalha pelo corpo. É fácil sair daqui. De lá.

A luz acende-se. A moça fala o que são mantras. A intuição me diz que eu já conheço. De onde? De outros tempos? De conversas alheias? De especulações cibernéticas? Ouço com atenção o que ela diz: "Man é mente. Tra é percepção." Não, Man é mente. Tra é liberação. Também não. A mente me trai e eu esqueço. Mas o som permanece intacto, a sensação produzida é vívida. O som vibra na cabeça e gera bem-estar. Não há lá fora, a mente integra tudo e segue as ondas vibratórias, dança num espaço inexistente, flutua sem concluir, sem investigar, sem controlar. É bom perder-me nesse canto.

O começo é tímido, as palavras se sustentam num dó lamentável, mas o som impulsiona. Em alguns segundos, ouço uma voz conhecida soar numa potência estranha. É a minha voz. "De onde veio, como venceu o medo do ridículo, como eu ouso cantar tão alto?" A sensação é boa e não há medo. "Psiu, eu canto!" – sou eu ensinando para a mente. Eu entoou: "ONG NAMO GURU DEV NAMO". O mantra que precede a prática de Kundalini Yoga tem um sentido de saudação reverente à infinitude dentro de mim. Então, acerco-me da grandeza verdadeira com humildade, sinto-me pertencente a algo intangível e, no entanto, tão real que conforta, acolhe e alimenta. Vejo um filho voltando para casa.

A sensação de voltar para casa é apenas o começo. Eu me reconheço na essência do que sou. Não há espelho capaz de me revelar como me percebo na postura simples, no simples respirar e ao entoar o mantra. O mundo deixa de ter espelhos, porque tudo é uma coisa só.

Fico aqui, com a vibração do mantra movimentando a energia dentro e fora de mim. Quero compatilhar o caminho que estou descobrindo nas aulas de Kundalini Yoga, mas vou devagar. Expira... Inspira. Na semana que vem tem mais.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Pra ver a mudança passar

Os sonhos, os planos, os arremedos de ambos, os esboços de histórias diferentes, as inspirações que vêm de toda parte e aquela vontade mais íntima e forte, tão importante que a gente não conta, só de medo de não dar certo, só de medo de agouro, mau olhado ou inveja. Todo mundo tem esse arsenal secreto de vida pretendida. Eu também. E como acontece com todo mundo também, poucas vezes parei para vasculhar minhas gavetas, essas existenciais e verificar o que ainda estava intacto lá e o que já havia brotado para o lado de fora.

Felizmente, acontece de, um dia, virarmos uma esquina qualquer e nos depararmos com alguém que não vemos há muito tempo e essa pessoa comentar, nessa conversa de esbarrões do tempo, justamente sobre o aspecto que você mais lutou para que viesse à tona. É quando a vida diz sim aos esforços, e quando a alegria sorri para fora.

Tristemente, o mais comum de se ver e ouvir é a tentativa alheia de não mudar o script. Ocorre quando a gente já andou quilômetros, venceu o medo, expurgou a culpa, permaneceu no palco com determinação e talento, já estreia outra fala, está intimamente se preparando para os aplausos e vem alguém trazer de volta a cena antiga, a cara antiga, o script antigo. Isso é triste.

Para essa gente que olha, mas não vê, para essa gente que se esquece que os papéis mudam durante o espetáculo que se chama vida, para essa gente que esqueceu a sensibilidade em outra gaveta existencial, – que não é a que falei antes –, para essa gente que não traz a percepção amorosa pra fora por nada, eu tenho algo a dizer: Mude pra ver. Ou, no mínimo, não diga nada, se não tem nada de bom pra dizer!

É, hoje eu não estou nada zen mesmo. Ou será que estou? A semana está tão inspiradora, estreei na aula de kundalini Yoga, chove lá fora agora, acabei de meditar e, saindo de um estágio muito sutil de percepção e consciência, resolvi ser mais eu do jeito que estou agora. E é assim: brotando pra fora.

Fica aí uma frase boa de Chico Buarque:
"Tem gente que tem medo de mudança. Eu tenho medo de que as coisas nunca mudem."