quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

História cotidiana

O menino de camiseta laranja correu atrás do carrinho. O carrinho era um trator bem pequenininho da mesma cor da camisa do menino e sobrava na palma da mão. A mão esticada quase tocou na moça de camisa também laranja, cabelo preto e corte Chanel. Laranja que faltou na logomarca do Banco Itaú, que era toda azul e estava estampada na camisa do rapaz que vinha na minha direção. E eu estava na direção aposta ao nascer do sol. O que não fazia diferença, estando o sol encoberto por nuvens. Nuvens que tornavam mais amena a caminhada.

A caminhada prosseguia e os passos eram largos. Largos como o vestido da velha senhora que não suporta mais vestido apertado e a idade só admite a elegância do conforto. Conforto que faltou ao homem gordo que usa tênis apertando os tornozelos e sua como se estivesse na sauna. Um suor diferente do suor da moça que corre ligeira. Tão ligeira quanto o rapaz que segue à frente e tem pernas fortes.

Fortes mesmo são os braços do rapaz que corta a grama, usando uma máquina barulhenta que solta fumaça e incomoda. Depois, o vento leva a fumaça e fica o cheiro gostoso de grama cortada. Cheiro de verde. Verde de vida. Vida que anda e passa.

Sou eu passando pela cena cotidiana, pesonagem de um momento inteiro que virou passado logo ali, na curva, quando eu olhei para trás e não reconheci mais a grama feia que, agora, está bonita.

O menino de camiseta laranja está chorando. É pirraça. O senhor que medita com a coluna ereta está de branco. Muito calmo. O rapaz de macacão laranja segura a vassoura e assobia na sombra. A árvore está mais verde. Choveu ontem à noite. O cachorro manco corre desengonçado atrás do coco. A moça gorda conversa com o cachorro obeso preso pela coleira desnecessariamente. Fico com pena e passo rápido. Amanhã esqueço.

Hoje é outro dia. Isso é outra história.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Ponte

Respiro e sei que existo. Mesmo de olhos fechados, sei do lugar que ocupo. Se os abro, vejo quem sou agora. E descubro que realidade é uma ponte que liga o que era ao que será. O instante já define-se entre brumas. O resto é história.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Raridade

Ouço a música e fico atenta ao trecho em que o compositor declara: "viver é tão raro!" O pensamento zen que, mais do que tudo, é atitude e tem a ver com o momento presente, com o estar atento para as raridades do viver, leva-me a outras elucubrações.

Penso que é raro a gente acordar para ver o dia nascer e se sentir em paz com o tempo que tem. É raro desfrutar com calma um bom prato, sem preocupações com o relógio, com as calorias ou com agrotóxicos, apenas explorando as alegrias do paladar. É raro acordar no meio da noite, abrir os olhos, ver o ambiente conhecido e voltar a dormir na paz dos que encontram o seu canto. É raro olhar para o lado e se encantar com a beleza e com o afeto de uma presença companheira e amiga. Tambem é rara a percepção da leveza de um andar sem dor, raridade que só o convalescente sabe dar valor.

São raros os momentos em que os braços se alargam para o aconchego de um abraço, quando os ouvidos captam nas palavras costumeiras a tradução de um afeto verdadeiro e quando a boca se cala pelo incomunicável. É rara a percepção da respiração, do ar que entra, revitaliza e dá vida até o último suspiro.

São muitas as raridades. E cada um tem a sua lista. A minha poderia continuar longa, mas o tempo é raro e eu vou ali desfrutá-lo. Deixo a inspiração: "Vai, aproveita a vida! O que há de raro neste momento, se não ele mesmo?"

Raro é o arco-íris depois da chuva e o olhar que eleva-se para ver.