quarta-feira, 24 de março de 2010

Meditação acidental

Um dia eu me perguntaram:
– você anda meditando muito?
Respondi que não. E veio-me uma pontinha de culpa. Então, expliquei que o trabalho anda exigindo muito do meu tempo. Não há como encaixar meditação. Já esforço-me bastante para fazer as "sagradas" caminhadas de todos os dias.

Alguns minutos depois, veio-me uma certeza e nenhuma culpa: medito todos os dias, todas as horas, todos os minutos.

Medito quando acordo e me espreguiço como gato. Medito quando fecho os olhos e vou para dentro para ver com que coragem vou encarar o mundo. Medito quando escovo os dentes e quando sinto o aroma do café que pinga lentamente ao ser coado. Há que se ter paciência nessa hora. Medito quando ando em torno da lagoa e vejo as pessoas sendo – cada uma do seu jeito. Medito quando tomo banho e sinto a água escorrendo pelo corpo, levando tudo o que não presta. Sei disso porque, nessa hora, eu medito. Medito quando passo meus cremes e aspiro o perfume, enquanto percebo onde o corpo guardou minhas memórias – ruins ou ótimas. Medito quando massageio ponto suspeitos e penso que alivio minha bagagem.

Medito quando vejo na agenda os trabalhos do dia e me programo para dar conta sem atraso ou descaso. Medito quando encaixo pausas para ver a vida e medir o tempo ganho – e não o perdido. Medito quando quando molho as plantas e quando aspiro o aroma da pseudo-horta. Vou longe nessa hora.

Medito quando almoço e coloco cores diferentes no prato para brincar de arte. Medito quando como um pedaço de chocolate e encho a boca, curtindo o gosto em cada canto – prazer é comunhão com o que há de mais elevado. Medito quando fico sentada diante do computador e leio as coisas do mundo, enquanto traduzo minha percepção para textos sob encomenda. Medito quando não paro de escrever, porque a inspiração está sem freio.

Medito quando saio e converso com os amigos. Medito quando preparo-me para dormir e penso no dia que há de vir.

Agora, respondo com convicção:
– Sim, eu estou meditando muito. Só que a minha meditação não é transcendental, ela é a meditação do aqui e agora, a meditação acidental. Pelo menos por enquanto...

sábado, 20 de março de 2010

O gato que não sumiu

Chorosa, ela pediu:
– Escreve um conto para o meu gato.
Veio-me um pensamento relâmpago:
“Logo eu, que não gosto de gatos?”
Assim como o gato, o pensamento sumiu. Respondi:
– Claro. O que você quer que eu diga?
– Diga que ele está bem.

Fiquei enternecida. Então ela queria uma historinha para acreditar?

Pensei em dizer:
– O gatinho foi andando, foi andando, foi andando...
E depois fazer cócegas para ela rir. Mas isso não teria a menor graça. Porque ele foi andando e sumiu.

Esta é a história que eu vou contar: Lulu era uma gata. Linda e manhosa, tinha até pretendente a namorado, um gatão malandro, de grandes bigodes e cara de mau. Mas Lulu nem tchum. Um dia, Lulu foi ser castrada e voltou Luis. O quê? Lulu era um gato. E nobre: com casa, cama, comida e pelos lavados. Quem seria doido de abandonar uma vida assim? Só mesmo um gato de rua. Luis era. E saiu. Ficou alguns dias fora, depois voltou. Saiu de novo e voltou. Saiu e voltou. Até que um dia, saiu e não voltou.

Atiraram o pau no gato? O gato subiu no telhado? Que nada! Gatos tem sete vidas. Pergutando aos vizinhos, a dona tristonha descobriu que Luis tinha até mais do que isso, usufruia do conforto de muitas casas. E agora, em que canto foi parar? Onde Luis está? Eu sei.

Vou acabar com esse mistério: Luiz está no coração de Patrícia. Então, está bem.

E que ninguém duvide do final feliz.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Quando eu me calo

Às vezes, são carícias. Outras, são inspiração para algo mais bonito. Acontece de serem como luz em meio a sombras, traçando um sentido, um rumo. É triste quando são vazias. Mais triste quando são flechas lançadas ao acaso. Não existe explicação para as impensadas. Pesam como pedra quando resolvemos carregá-las com fé cega. Na maioria das vezes, são dispensáveis. E a vida faz-se delas. Usamos o tempo todo em pensamentos, atos e omissões. Talvez por acreditar que, como personagens da história, temos que ter roteiro e muitas falas. Ninguém quer ser o coadjuvante mudo. A estratégia é falar muito.

Hoje acordei atenta às palavras. Não sou dos personagens que mais falam. Também não uso sempre a palavra mais certa. Ocorre de usar palavras que ferem. Ocorre de ser frouxa como mel escorrendo pela boca. Ocorrem vômitos de palavras engolidas a contragosto. E também palavrões. Sobra o quê? Confidências suspeitas, mentiras gentis, citações aprováveis, besteiras do dia-a-dia, como o leite derramado... Talvez seja hora de calar para a alma.

Calo-me e cito uma frase de Barry Stevens do livro Não apresse o rio – ele corre sozinho, o mais zenhumorado que eu já li:

 “Como criança, eu sentia fome 
antes de conhecer as palavras que rotulam tudo isso. 
Eu sentia. 
Agora, quase só uso palavras 
e não sinto quase nada.”


Fiquei com fome de dizer:
Quando eu me calar no coração, 
ouça-me com os olhos.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Deus, o rato e a lagartixa no banheiro

Uma mulher anda por Copacabana em estado de graça. Vê tudo e ama. Segue tão enlevada que chega ao carinho extremo de se sentir a mãe de Deus. E se justifica, dizendo que não há nisso nenhuma prepotência ou glória, já que o “carinho por um filho não o reduz, até o alarga.”

Ia seguindo nessa beleza de amar, quando quase pisa num rato morto. Acabou-se. Toda trêmula, confessa que a grosseria de Deus a insulta. E mais: “Minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada.”

Faz-me rir este conto de Clarice Lispector. Não, ele faz mais: causa-me uma cegueira momentânea, como acontece quando há o choque de um clarão muito grande após a escuridão. Fico tonta, tateando minhas convicções. Depois eu me questiono. Depois eu me calo. Depois eu me vejo. Depois eu me deixo.

Acontece isto com a gente o tempo todo: sucedem-se semanas de calmaria, a vida vai fluindo fácil como rio raso, então, do nada, vem a sombra, o susto, o desconforto ou o medo implacável. A gente tende a se sentir ridícula ou decepcionada diante de uma felicidade tão frágil. Mas não precisa ser assim. A vida inteira é que se torna grande. Inteira assim, com os pequenos – como tenho dito –, com as chatices, com os compromissos inadiáveis, com os riscos, com os ríspidos, com os sustos, com os choques, com os mornos, com os gelados, com os pontos sem nós e com os nós apertados... É a soma que insere sabedoria na história.

O conto de Clarice chama-se Perdoando Deus. Confesso que eu também já fui tentada a responsabilizar Deus por uma decepção e ficar brava com o fato. Só que, ao invés de perdoá-lo, eu pedia perdão. Clarice amou mais. Colocou-se diante d’Ele – respeito maiúsculo – e perguntou: “Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho da minha natureza?”

Lembrei-me deste conto, porque ontem estava regando violetas no canto claro do banheiro, cheia de ternura e calma. Então, pressenti um movimento. Olhei para baixo e pronto, num átimo, mandei vaso, caneco cheio d’água e elegância para o alto, dei um berro, pulei dois metros e levei dois minutos para respirar aliviada. Ela era mínima, mas era uma lagartixa. O fato foi mínimo, mas, senti o desconforto do escândalo e o ridículo da revolta sem causa.

Então, tal qual Clarice, eu me pergunto: Como assim? Eu estava feliz e fui provocada. Ridícula sou eu? Então não era motivo para um acerto de contas? Foi ridícula a ternura, a intervenção ou meu asco? Paro por aqui. Estou aprendendo a pensar o inteiro e concluo que não teve nada de ridículo, nem mesmo o pavor, sinal das ligações atávicas com as cavernas. Nem mesmo o desapontamento, sinal de sangue nas veias. Nem mesmo o perdão, sinal de que sei rir de mim. E ainda cito ela:

“Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes.”

Com licença que vou matar o mosquito que me picou, ver o pôr-do-sol e falar com Deus.