sexta-feira, 18 de junho de 2010

O amor e seus enfeites

Ela já viveu 90 anos e parece pronta para mais uns tantos. É divertida, simpática, autêntica e eu adoro nossos encontros. Vejo-a quase todos os dias e quando não a vejo, resta-me o consolo da visão colorida que é o muro da sua casa. Ali, ela dispõe muitos vasos e coloridíssimas flores de plástico. É um espetáculo. Vejo o muro verde adornado pelos volumes cor-de-rosa, laranja, vermelho, amarelo... Não gostava de flores de plástico, mas ela conquistou essa exceção.

Vaidosa, sempre usa esmalte colorido. Leiam co-lo-ri-do com todas as letras e tons. Já a vi usando esmalte laranja, rosa, mas vermelhos são os seus preferidos. Nos lábios, batom sempre. Não se descuida nunca e é tão simples, tão vestidinho claro, florezinhas salpicadas, golinha rendada. Tudo isso quase distoa do olhar esperto que tudo capta. Quase, porque o olhar, somado ao sorriso, combinam perfeitamente com essa dona feliz.

E felicidade é a palavra que deveria ter começado esta história. Dona Isabel é feliz. Feliz porque pode subir a ladeira – considerável ladeira –, carregando suas compras de todos os dias. Feliz porque toma uma latinha de cerveja dia sim, dia não e conta isso pra todo mundo com ar de menina sapeca. Feliz porque já tem uma bandeirinha do Brasil fincada no vaso de tulipas. Feliz porque tem uma casa só dela. Feliz porque dá conta do serviço e não precisa de faxineira. Feliz, porque acorda cedo e sai perambulando pelo bairro. Feliz, porque conversa com todo mundo. Feliz, porque é a mais popular da rua. Feliz, porque sua saúde é invejável.

Eu poderia inumerar centenas de motivos que Dona Isabel encontra para fazer da felicidade a sua palavra, mas paro por aqui. Quero ir direto ao ponto que, tenho certeza, a deixa mais feliz. Ela me confidenciou outro dia:

– Todo mundo gosta de mim.

Oh, meu Deus, como não gostaríamos?

Só resta dizer que, com seus enfeites, caprichos e cuidados, essa Isabel tão inteira ensina algo valioso: Ela gosta de si. Mais ainda: Dona Isabel enfeita sua casa e se enfeita, sabendo que isso faz a vida mais bonita.

Para ela, caberiam os versos de Cora Coralina:
Não sei... Se a vida é curta
Ou longa demais pra nós,
Mas sei que nada do que vivemos
Tem sentido, se não tocamos o coração das pessoas
.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Costume de olhar

Desenvolvi uma técnica meio zen que consiste em fechar os olhos e andar uma longa distância no escuro. A minha teoria é que andar de olhos fechados é muito similar a andar pela vida. A gente nunca sabe o que virá, mas precisa seguir, precisa acreditar que vai dar tudo certo e que, no final, atingiremos nosso objetivo.

Acho que andar no escuro tem a ver com confiar na sorte ou na providência divina. Tem a ver também com não temer obstáculos, sabendo que a intuição sempre nos guia. Se viver é um salto no abismo do não-saber, a minha técnica consiste em ensinar a mente a calar e deixar o corpo saltar.

Às vezes, é meio constrangedor, porque o melhor lugar para fazê-lo é onde ando todos os dias. Por ali, circulam centenas de pessoas. Já abri os olhos segundos antes de esbarrar em alguém. Dá para explicar o que se passa? Nem tentei.

Tem sempre um momento em que eu digo: “Ai, que medo! Não vou dar conta.” Mas insisto, porque a gente sempre consegue dar mais um passo.

Essa era a minha teoria. Era, porque hoje mudou. Foi assim: fechei os olhos e andei. Ao abri-los, percebi o verde em volta com uma nitidez arrebatadora, e o brilho do sol na água, a sombra das árvores, as cores das roupas, o andar das pessoas. Eu estava no final da minha caminhada e só naquele momento o real me tocou.

Percebi que temos o costume de olhar e não ver. Será que eu vejo o crescimento da àrvore? Será que eu vejo a favela e seu significado? Ou será que prefiro não ver? Será que eu olho e não vejo o homem que dorme debaixo do banco? Será que eu não vejo para não sentir o frio expresso no corpo encolhido? É, não dá para olhar tudo. Mas vou continuar andando às cegas por alguns segundos para enxergar melhor o mundo.