terça-feira, 31 de dezembro de 2019

De 2019


De 2019, carrego algumas dores. E elas estão registradas onde a memória e o sentimento alcançam. São como cicatrizes, só que, ao contrário delas, não enfeiam, apenas enobrecem minha alma. Essas marcas são aprendizados. Aprendi que não posso mais me calar, porque doeu demais ver fome, abandono, violência, abuso, covardia. Doeu de maneira sufocante ver a lama, o óleo, o tiro. Doeu assistir à imbecilidade subir ao palco e receber aplausos ignóbeis e incautos. Doeu ler as mentiras, a manipulação e o engodo, abalando a fé do povo. Doeu ver o cenário obscuro e doeu tanto que elegi as flores como arma. Aí, doeu saber que poucos entenderam a metáfora. A ternura teria perdido espaço? Não. Foi só a pressa de engolir as news, as fakes e os demais fragmentos desse tempo estúpido que impediu a apropriação do belo. Pois esta sou eu, uma mulher que se coloca de pé para fazer bom uso do aprendizado. Observem, ergue-se uma mulher pronta para a luta.

De 2019, carrego também a satisfação pelo trabalho realizado. Conclui um livro, depois de muita pesquisa, inúmeras páginas redigidas e noites mal dormidas. Também tive um livro premiado e isso me deu alegria. Aceitei o esforço de um e a glória do outro, porque sei que atuei com graça. Gostei de toda a caminhada, realizei com tanto amor que, dizendo assim, parece que atenuo o difícil e finjo que foi fácil. Mas não. Esta não sou eu. É difícil, mas eu gosto de me sentar aqui e ir vendo as palavras despontarem na tela, como se não fosse eu, como se fosse o outro ser caprichoso que habita meus desejos de escrita que definisse o próximo ponto ou a vírgula. É trabalhoso, mas é também um prazer escrever esses registros da história. Isso torna a minha própria história mais bonita. Esta sou eu, uma redatora deixando de lado a modéstia.

De 2019, carrego agradecimento. Vivi momentos de alegria e de maturidade com minha família. Alguns não foram fáceis, mas todos me valeram. As semanas foram passando e eu me apropriando mais do meu ser, da minha existência. Ficou claro o quanto a minha família pode despertar o melhor de mim. Essas pessoas estão ao meu lado incondicionalmente, de mãos estendidas, prontas para ver a criança andar. E esta foi apenas uma alusão à teimosa infância que carrego no peito. Esta sou eu por inteiro, com amor, raiva, drama e medo.

De 2019, carrego amigos. Poderia parar por aqui, porque a palavra já expressa muito, mas quero falar do óbvio, quero falar das alegrias, encontros, descobertas, lembranças, desencontros. Amigo é a certeza de tentativas, erros e acertos, de novos capítulos, com partidas, despedidas e recomeços... Meu coração se alarga na certeza de que os tenho em bom número. Verdadeiros, perfeitos e imperfeitos, gente como a gente, sempre comigo, do jeito que eu sou. E esta sou eu, uma amiga.

Em 2019, fiz Sadhanas, pratiquei com disciplina Kundalini Yoga, tirei a poeira dos patins, voltei a nadar, cozinhei só por prazer, li muito livros bons e alguns nem tanto, mas que eu cismo em ler até o fim. Agora, sigo de mãos dadas com o homem que escolhi para andar ao meu lado. Não sei para onde iremos, mas sei que há amor no caminho. Então, está valendo. Com esta carga toda, acho que 2020 já começa valioso. E esta sou eu, sendo otimista.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Por uma nova estrada

Atravessei a rua. Não o fiz como quem segue com pressa para um compromisso. Atravessei a rua ciente dos meus passos, atravessei como escolha pelo diferente, para colocar a vida em movimento. Um exercício banal que desconsertou a rotina e tocou minha alma. Atravessar a rua me vez pensar.

Em um ano, quantas ruas, avenidas e praças atravessei? Quantas vezes subi e desci escadas? Quantas vezes segui sem notar o tempo, os transeuntes, os cães, a morada do mendigo? Quantas vezes segui sem noção de que o tempo está no meu encalço e de que a pressa só nos torna mais íntimos? Quantas vezes segui sem saber que estava sempre no mesmo lugar?

Hoje não. Atravessei a rua, segui ladeira acima e olhei para o céu, vi promessa de um dia quente; depois, olhando para baixo, vi meus pés. Um, depois o outro. Adiante, vi uma moça seguindo tão rápido quanto um segundo. Aí, vi a vida passando.

E vi que a vida pode ser simplesmente uma história de ruas e pontes, de estradas longas e atalhos, de escolhas, de erros e acertos, de seguir em frente e voltar atrás. Posso falar de quedas, de cicatrizes, de tropeços e medos, posso falar de palavras e cabelos ao vento, de encontros e despedidas, de sapatos novos, apertados ou com a forma do pé; posso falar de lugares onde nunca estive, de lugares onde deixei pegadas e que deixaram marcas em mim, de lugares onde volto sempre e de outros para onde não desejo voltar.

Hoje, não fiquei preocupada com o ano novo, com o recomeço, com a novidade, não esbarrei na pressunção de conhecer essa estrada ou no orgulho de uma trajetória enfeitada. Estamos todos a caminho, vamos seguindo para algum lugar diferente, para outras conquistas ou, simplesmente, estamos voltando para casa. 2017 não é outro ponto de partida, é o destino se cumprindo.

A história continua, a estrada continua e, agora, eu quero por os pés nos chão.


terça-feira, 31 de maio de 2016

Aquele abraço!

O velho cobertor, o eterno livro na cabeceira, o sabonete, a tolha, o mesmo espelho, o mesmo pente, o relógio marcando o tempo, a caneca de café com leite, as migalhas espalhadas pela mesa, a pressa, algumas ideias de vida diferente, o futuro do pretérito quase sempre...

Dia após dia, a rotina estabiliza a vida. Seguro-me ao que sou no mais íntimo dos meus gostos, das lembranças, dos guardados, dos aprendizados, dos valores que trago e sigo como cego que sabe ver no escuro. Dia após dia, a rotina celebra a vida nos detalhes, é a velha conhecida, a amiga confidente.

E chega um tempo em que os fatos exigem um olhar para outra direção, um tempo de novas escolhas e de caminhos diferentes. O conhecimento move-se rápido no espaço e no tempo. Ou nos movemos nesse ritmo, ou flertamos com o esquecimento. Hoje, o que me moveu foi um abraço.

A professora, sentada diante de um bom prato de comida, chamou o aluno que passava do outro lado da rua. Tímido, ele demorou a aceitar o convite para almoçar. Mais tímido ainda, foi ao buffet e se serviu de pouca comida. Depois, ficaram ali, num diálogo entre garfadas. Ela perguntando, o menino ensinando o viver dele. Tomou Coca-cola, deixou um restinho de arroz no prato, levantou-se pronto para agradecer e seguir. Foi então que ela se levantou e o abraçou. Ninguém estava preparado para aquele abraço forte, nem o menino, nem eu, nem a moça que assistia à cena da mesa em frente. Ficamos todos paralisados nesse fragmento de segundo. Então, num sorriso de dentes brancos e olhos fechados, na entrega do corpo ao movimento, eu vi uma nova expressão de aconchego.

O menino podia prescindir de comida – ele comeria o que tivesse em casa –, mas aquele abraço matou foi a fome de ser amado, de ser igual, de ser alçado. Tive vontade de abraçar. Tive vontande de chorar. Sai da sala, porque ali não tinha lugar para lágrimas. Depois, a rotina me laçou e segui o ritmo dos meus dias. Mas segui diferente. Amanhã, o espelho vai mostrar a lembrança do abraço e do sorriso no meu rosto mais amigo.

O menino chegou chamando-a de tia e saiu dizendo: "Até amanhã, Professora". E a lição foi de generosidade.

domingo, 3 de abril de 2016

Sou da paz

É, sou mesmo romântica. Ou ingênua, diz a autocrítica disfarçada de razão. Já o bom senso pede algumas palavras a mais, à guisa de justificativa. Então, neste domingo meio tenso, meio parado, resolvi usar o verbo para me expressar melhor. Para ser mais específica, resolvi usar o verbo para mostrar o meu descontentamento com a cena brasileira, sobretudo, com a maneira como as pessoas estão se relacionando.

Leio comentários, trechos de reportagens, maledicências, desaforos e, felizmente, também leio frases sábias, pedidos de calma, votos de amor e paz. É uma lástima que estas últimas sejam tão poucas. Há muita estupidez no ar, muito ego inflado, há falta de vontade de se colocar no lugar do outro, há egoísmo e, pior que tudo, há ódio declarado ou muito bem disfarçado.

Meu coração anda oprimido neste mundo virtual que sabe ser tão cruel. Internautas se imbuem de uma tal coragem, que se permitem digitar posts deselegantes num impulso, sem refletir. Eu também já digitei frases cheias de razão, conhecimento e fúria. A diferença entre mim e alguns sábios virtuais é que, passada a raiva, engolido o orgulho e respirando fundo, tão fundo que toco minha consciência e o meu coração, fica impossível clicar em: publicar. Sempre deleto. Fica apenas o exercício de desabafo e, depois, não fica nada. Pensando bem, sim, fica alguma coisa e é o que me comove, fica a tristeza.

O que posso fazer? Sou romântica, ingênua e o meu bom senso se cala para a leveza da alma. Não responder não é minha covardia, é apenas o meu jeito de mostrar que o silêncio é mais sábio e valioso. Mas, a tal ponto as notícias e comentários me tocam, que vou dormir me perguntando: será que essa pessoa que provoca, julga, condena e pune tão duramente vai dormir feliz? Será que, na calada da noite, congratula-se por ter razão e provas? Será que acorda com o coração leve e a alma lavada? Eu não.

Sinto-me parte de algo maior, como se todos nós fóssemos um único organismo, pulsando, existindo. Sinto isso quando medito e ouço pulsar o coração do mundo. É nele que me acolho. Por isso, acredito que tudo precisa funcionar para que o mundo fique bem. Não consigo ficar satisfeita se milhões de pessoas vivem em privação, sem paz, sem chão, sem dignidade, sem necessidades básicas atendidas. Por toda parte, vejo pessoas que carecem de um olhar, de um movimento, de uma mão e fico triste.

Sei que para alcançarmos justiça social é preciso que haja uma série de mudanças. No entanto, a melhor metáfora para o momento do país é um jogo de tabuleiro. Precisamos avançar dez casas, mas são lançados os dados e – decepção! – voltamos 12. Ninguém avança passando por cima de valores como justiça, paz, respeito, liberdade, ética e igualdade. Isso é retrocesso.

É, não sei se eu sou ingênua. Apenas não deixo que as pessoas e sua visão de mundo me definam. Minha paixão é que me define e eu sou Iêda, mulher de paz, amor e muita luta.

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Escolhas de ser

Ondas elevam-se e, em seguida, arrebentam-se. Entre uma e outra, fica uma lacuna, um fragmento de segundo, em que o que há é o nada. Mas o tempo passa e outra onda sempre vem... E vai. Como, aliás, quase tudo na vida. Na transitoriedade dos momentos, o que há de perene é o espírito, são os sentimentos, é o conhecimento. O resto passa. E se quase tudo passa, neste sábado que parecia vazio de opções, escolhi o bonito e mais duradouro para mim. E o leque da felicidade se abriu em escolhas.

Primeiro, uma tarde de cochilo merecido, que não foi bem uma escolha, mas um imperativo do cansaço. Depois do sono, banho com muita espuma, roupa branca e perfumada, um canto ventilado e um livro. Assim, como só acontece quando se desacelera, o tempo passou a fluir. Aproveitar o tempo não tinha mais importância e eu fui chegando mansa de onde estava brava, lá, onde a vida me ocupou demais. Desocupei-me felizmente.

Fiquei feliz. Nesse sentimento, não tinha nada de euforia, de alegria, do entusiasmo de um encontro inesperado. Tinha a paz de ser e a opção de estar. Primeiro, fiquei quieta, observando, para não assustar a fera em repouso. Depois movi-me devagar...

Devagar e sem premeditar, fui até a gaveta dos bons guardados e, de lá, resgatei um chá exótico, um incenso suave, uma vela de mel, presentes de pessoas queridas. O meu canto ganhou vida e minha vida mais sentido. Ouvi mantras e senti a eternidade soar em mim.

Viver com o coração aberto é ter boa companhia. De um jeito ou de outro, algumas pessoas estiveram comigo e eu compartilhei minha felicidade com um mundo de gente. Sinta-se comigo também, porque estou em cada palavra.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Dias amargos: Boldo

Arrasto a tal barra de rolagem para cima e para baixo e vou me enfastiando com as cores, o sol, a praia, o bar, a comida bonita, vou captando impressões ligeiras de eventos, férias, almoços em família, reunião com os amigos, piscina, cerveja, farra, alguma lucidez, papo sério demais, desconfio, na tela reluzente do computador, capto informação demais e de menos. Hoje, o espetáculo tornou-se mais enfadonho. Vou sair.

Vou andar e ver gente de verdade, que sobe no ônibus, tropeça e encharca o sapato na poça d'água, gente cansada, carregando sacolas de não sei quantas compras, vou ver a chuva fina que acinzenta a cidade há dois dias, ver o verde limpo; vou sair e perceber os músculos e concluir que eles aguentam a subida.

Mas, lá fora, tudo rola ainda mais rápido. Os carros aceleram numa pressa de chegar a não sei que lugar, os pedestres não se olham, esbarram-se, lançam um resmungo ao ar e passam. Eu penso: quero casa. Então, aquieto-me cá, onde estou.

Quem sabe a TV? Cento e poucos canais e eu não acho nada que me atraia. Bichos, pratos bonitos, moças sem sal, ah, e os homens sérios.. Como me parecem tolos na sua ira televisiva. Rodo, rodo e percebo que tudo faz parte do mesmo jogo. Nas telas, nas ruas, no movimento, na paralisação, parece que tudo é entrar e sair, procurar e encontrar, envolver e descontrair. Mas não é verdade. Não há dentro, há superfície; não há descontração, há desconcentração; não há informação, nem conhecimento, há engodo.

Tudo bem, acordei inquieta num dia cinza. Amanhã, qualquer bobagem me seduz. Hoje, tudo o que quero é um copo de boldo, certa que estou de que o amargo deixa a gente mais doce.