terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Quando a vida é uma festa!

Reinaldo disse: “Há amigos da sala e amigos da cozinha”. Entendi perfeitamente o significado disso, pois estávamos em volta da mesa e falávamos sobre a alegria de receber os amigos e servir uma boa comida. Melhor ainda quando vamos preparando, enquanto os outros bebem e conversam sem compromisso. Nessas ocasiões, há que ter riso e música para dar o ritmo.

Amigos da cozinha são aqueles que abrem nossa geladeira e se servem sem cerimônia, são aqueles que provam o tempero e dão palpites, são aqueles que não se incomodam com a bagunça nem se limpamos a área a todo momento. Amigos da cozinha são aqueles que relembram pratos de outros tempos, porque amigos da cozinha, de verdade, estão com a gente não é de hoje, são amigos de muitos anos. Mas, amigos da cozinha também podem ter chegado há pouco e, ainda assim, parecer já ter andado uma vida com a gente.

Neste final de ano, tive várias oportunidades de estar entre amigos da cozinha e todas foram como no filme A festa de Babette, não tivemos medo de nos deleitarmos com o prazer terreno de comer e saimos mais felizes. Falarei das três ocasiões em que a vida foi uma festa.

FESTA ENTRE NÓS
A primeira festa foi de um grupo de amigas, o Entre Nós. Durante todo o ano, nos encontramos uma vez por semana para costurar, bordar, tecer e, sobretudo, conversar, compartilhar experiências, sonhos e histórias. Para encerrar a temporada, nada mais apropriado do que um almoço em grande estilo. Foi. Em volta de uma mesa enorme, reunimos dez mulheres e dois homens (companheiros que vieram somar sabor e graça. Um deles preparou o bobó de camarão, enquanto o outro comandava a festa como um mestre de cerimônias). Naquele dia, cada uma levou um petisco para beliscarmos antes do almoço. Uma preparou abobrinha em conserva que estalava ao ser mastigada e enchia a boca com um sabor de azeite e tempero suave. Outra levou pastelzinho da Pastelaria Marília de Dirceu que dispensa comentários, é bom e ponto. Saboreamos um ótimo queijo parmesão cortando-o em lascas e deslizando uma boa porção de geléia de jabuticaba, que fazia uma festa de contraste doce com salgado e amarelo pálido com vermelho escuro. Houve quem se aventurasse a preparar o petisco na hora, servindo-nos um guacoamole em chips de milho, creme macio e base crocante em harmonia picante. Ali, amigas reunidas, cortamos frutas, inventamos combinações, fizemos salada e, depois de nos fartarmos com essas delícias, distribuimos presentes. Rimos com a mise-en-scène de cada uma na hora de revelar a amiga oculta. Parece uma coisa chata? Só para quem está de fora. Na hora do almoço, a pimenta malagueta era espremida num canto do prato e misturada com parcimônia ao creme de consistência ideal que resultou da mistura de mandioca, tomate, cebola, cheiro-verde e camarão. No final, dançamos felizes e só faltou nos darmos as mãos e brincarmos de roda, como no filme Babette. É uma felicidade participar de uma festa assim.

FESTA DA PAELLA
Outra ocasião que deixou boas lembranças foi na minha casa, quando reuni alguns amigos para uma despedida antes de viajarmos no Natal e ano novo. No cardápio, casquinha de siri e paella. Os preparativos começaram um dia antes. Eu e Rogério compramos – com a ajuda de todos – frutos do mar selecionados, o que exigiu idas a diversos supermercados e peixarias. Limpamos cada camarão com paciência zen – que eu tenho mesmo. No dia da festa, cortamos tomates, cebola, cheiro-verde e pimenta, caprichamos no preparo de cada ingrediente: lulas em anéis, polvo em generosos pedaços, peixe em cubos, mariscos ao vinho, um pouco de gengibre (invenção que caiu bem), lagostim aferventado ligeiramente... Tudo preparado, levamos as casquinhas de siri ao forno e aguardamos os amigos. Sendo um prato que mistura os mais diversos ingredientes, a paella parece ter inspirado a lista de convidados. Reuni amigos de diferentes rodas, com profissões distintas e a mistura foi bem-sucedida. A festa foi de gente com personalidade forte, bem-resolvida, engraçada, amorosa e companheira. A conversa foi animada e pessoas que acabavam de se conhecer contavam casos como velhos conhecidos. Entre os convidados, havia quem nunca tinha ido à minha casa, mas, como bons amigos de cozinha, souberam encontrar a geladeira e até o banheiro da área de serviço na hora da necessidade; e havia quem nunca falta na lista, são os amigos do tipo cadeira-cativa. Para todos, fiz uma pequena lembrança, saquinho de ervas para banho e pimenta em conserva. Escrevi num bilhete o meu agradecimento e a minha alegria de celebrar a vida juntos. A grande surpresa foi ouvi-los lendo em voz alta, como num jogral – êta coisa antiga. Confesso que chorei e não foi pouco. Emoção sob controle, era hora de preparar a paella. E foi preparada sob flashes. Cada ingrediente acrescentado na enorme panela nos encantava mais e exigia uma foto. Nunca tinha feito paella e, por isso, depois de servir, observei atenta o rosto de cada pessoa que levava a primeira garfada à boca. Por fim, respirei aliviada, porque a expressão que se seguia era de satisfação. Sei que bolo de chocolate não era a melhor opção de sobremesa, mas já estava pronto e eu optei por não ter mais trabalho. De uma coisa estou certa: meus amigos gostaram. Quando nos despedimos, voltou aquela sensação de que no clip da minha vida teria, obrigatoriamente, cenas dessa festa. Resta dizer que, no dia seguinte, abri a geladeira para ver se a sobra daria para o almoço. Não deu, o que atesta o sucesso do prato. Provei que misturar humor, perspicácia, bons argumentos, carinho, atenção e bom tom com inteligência, cumplicidade, integração, ajuda preciosa e falas pertinentes dá bom resultado. E o amor foi o melhor tempero desse prato. 

FESTA DE NATAL
O Natal é festa familiar e eu faço questão de estar com minha família nesse dia. Este ano não foi diferente, fui para Montes Claros e, fora o calor quase insuportável, a festa foi na medida certa. Reinaldo, aquele que falou sobre os amigos da cozinha, é meu cunhado e ele parece ter previsto como seria o nosso Natal. No calor da cozinha, reunimo-nos para preparar os pratos. O forno ligado para assar o pernil desde as 14:00 horas, colaborou para elevar ainda mais a temperatura, mas isso não diminuiu o ânimo. Eu cortava, minha mãe temperava e comandava o preparo, outro cunhado preparava sua receita consagrada de bacalhau, uma irmã providenciava ingredientes lembrados na última hora, a outra fez as compras no dia anterior e enviou-nos uma assistente. Preparar e cozinhar em equipe dá outro sabor à festa. Cada um ali, na hora em que, já vestidos e perfumados nos reunimos em volta da mesa, sabia que foi importante para que tudo fosse como estava sendo: um momento de amor e solidariedade. Isso combina muito com o Natal. Recebemos visitas inesperadas, o que também foi bom, pois somou histórias e reduziu as sobras. Também distribuimos presentes e eu adoro esse momento, não importa o que ganho. Gosto da troca, da lembrança. Fomos dormir tarde e cansados, mas satisfeitos. Naquela noite, houve uma festa de afeto.

A propósito, Reinaldo diz que amigos da sala são aqueles que chegam e, após conversas superficiais, vão-se embora. Traduzindo: são aqueles para quem precisamos “fazer sala”.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

No ar que eu respiro



Aspiro o aroma e viajo no tempo. Vem de muito longe as lembranças que o cheiro de lavanda desperta. Revivo sensações e sentimentos bons. Mais do que isso, todo o meu ser responde com relaxamento, paz e serenidade. Às vezes, o coração acelera e a pulsação aumenta, é quando aflora a emoção da descoberta amorosa. Aromas tem essa propriedade, acessam canais diversos, são portas que se abrem para uma percepção mais sutil, mudam o astral, carregam uma energia de transformação.

Li em algum lugar que o aroma aspirado atinge a parte anterior do cérebro, responsável pelo ajuizamento das coisas e pelo comportamento emocional. Atinge também o lobo temporal, receptor emotivo, e o hipocampo, gerenciador da memória de ocorrências, mas que possui também um importante papel no controle dos estados afetivos. Dá para perceber que o cheiro atinge o centro das emoções e é ali que resgata história e estimula novas buscas.

É por isso que não dispenso um cheirinho. Velas perfumadas, réchaud, essências, pout pourris, incensos, aromatizador de ambientes, vale tudo. Gosto tanto e acho que tornam o ambiente tão mais leve que vivo presenteando os amigos. Foi por isso também que, numa ocasião, comprei um réchaud para uma amiga. O presente foi acompanhado de uma essência e velas. Bastava colocar água e gotinhas da essência, acender a vela sob o réchaud e aproveitar. Parece simples e assim foram dadas as instruções. Ocorre que ela não colocou água. Um minuto depois o ar estava carregado, o cheiro espalhou-se por uns dois andares e ela teve que se explicar com a vizinhança que questionava: “Que cheiro é esse?” Comigo, ela foi categórica: “Aquilo fede!” Por precausão, agora detalho mais as instruções.

Acredito mesmo que a aromaterapia funciona. Eu só não sei porque nunca me lembro de aspirar umas gotas de lavanda quando estou com os nervos à flor da pele e acabo sendo grossa com os incautos que atravessam meu caminho, como a moça do telemarkting. Seria mais simpático aspirar uma essência e não levar a vida tão a sério.

Agora relembro cenas de novelas em que a protagonista rica e chiliquenta desmaia e alguém vem com um vidro de sais. Acho que nós, simples mortais, merecemos este luxo. Acredito nessa espécie de luxo e riqueza que é feita de serenidade, bons sentimentos e paz.

Por falar em riqueza, quem nunca entrou numa loja perfumada e se sentiu imediatamente à vontade? Entrar numa loja chique, dessas que investem numa essência especial, deixa a gente se sentindo rica, feliz e muito propícia a gastar mais do que devia. Às vezes vale a pena.

Enfim, para um ano novo, no mínimo, mais perfumado, segue a lista para aspirar.

Alecrim - Revigorante, age positivamente sobre o esgotamento físico e mental. Deve ser usado durante o dia, pois é estimulante e pode tirar o sono. Seu aroma combina com ambientes de trabalho, pois sua característica energética beneficia a persistência no alcance de metas. É um ótimo antídoto contra o estresse.

Eucalipto - Tônico e estimulante, evoca uma sensação de liberdade e leveza.

Lavanda ou Alfazema - Óleo número um no combate ao estresse e às tensões nervosas. Excelente no tratamento da insônia: basta uma gota no travesseiro para que seus efeitos sejam sentidos. Combate a ansiedade e a depressão.

Laranja - É equilibrante e harmonizador.

Para saber mais, clique aqui

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Zé e o zen



Imagino que ele chega com o coração disparado. A dúvida de que dará ou não conta do recado o aflige. Então um olhar em volta traz a paz necessária e ele deixa a resposta para o tempo. Isso significa entregar-se ao momento.

Imagino que, no dia seguinte, ele acorda às 4:20 da manhã e se dirige para o espaço onde permanecerá sentado, em posição de lótus e com a coluna ereta durante 30 minutos. Senta-se e tenta desconcentrar-se, enquanto o pensamento vai da pessoa que se agita ao seu lado para o silencioso pulsar da sua própria respiração. No instante seguinte, uma dor desvia sua atenção. Ela desliza pela coluna, indo instalar-se na região lombar. Bastaria uma ligeira inclinação e o alívio viria. Mas ele quer resistir. O ar sai suave pelas narinas e é assim que ele expulsa o medo. Aí, a dor vira outro pensamento: “medo de quê?” Antes que se fixe, já outro pensamento vem: “Estou mais leve.” Assim, em pensamentos curtos e atitude alerta, passam-se os minutos. O tempo não se fixa, é preciso ir além do passado e escapar das armadilhas do futuro. "Estou aqui e agora" – pensa. Este instante é o que importa e nele não cabem críticas ou julgamentos. Lá está ele, não há fuga. Respira e espera. O sino avisando o final da prática não toca. Ele quer ouvir o sino. Oscila, reequilibra-se, pensa em relaxar as pernas. Ele vai além dos limites. Enfim, ouve o sino e se levanta como um guerreiro que venceu a si mesmo.



Não tão depressa. Agora, é preciso meditar em pé, seguindo no vagar do pensamento. Mãos se apoiando em frente ao diafragma, ele respira e dá meio passo. “Para onde vou?” Não espera resposta. Ele está ali por escolha e, então, volta seu olhar para o vazio pleno.



No retiro que eu imagino, ele sai da sala e se envolve em trabalho, refeições, recitação de sutras e momentos livres, sempre tentando estar atento ao momento presente. O dia passa e o coração se aquieta. Uma tranquilidade insuspeita instala-se. Não tem mais volta. Às 21:00 horas, com o sinal de silêncio e recolhimento, encerram-se as práticas, apagam-se as luzes e ele vai dormir na paz dos que começam a iluminar o lado de dentro.

O personagem é o Zé, meu amigo, e as cenas que imagino foram baseados num relato que carinhosamente recebi junto com as fotos. No último final de semana, Zé participou de um retiro num mosteiro zen. Pedi para que desse notícias. Foram dadas. Ao lê-las, meditei também – ao meu modo – para conseguir traduzir que busca é essa e o que nos move.

Fui longe. E vou novamente. Vou ao século XVII, para fazer do pensamento de Descartes o meu ponto de partida. Descartes afirmou que uma consciência clara do pensamento prova a própria existência: “Penso, logo existo”. Ele acreditava que uma pessoa não deveria buscar respostas baseadas na fé e, sim, na suspeita.

Eu também acreditei. Aliás, acreditei em muitas “verdades” que li. Quem era eu para duvidar de Descartes? Aos poucos, vou aprendendo que sou um ser investigando e, como tal, tenho todo o direito de duvidar ou de buscar outras respostas se o vazio persiste.

Fechei os olhos e me ouvi com sincero interesse. Decifrei o enigma: eu não quero apenas as respostas do mundo, porque as perguntas mais difíceis são as que faço a mim mesma e, estas, somente eu posso responder. Muito antes do que eu concebo como antes, essas questões estão presentes e a resposta vai muito além do racionalismo ocidental.

Zé também está descobrindo isso. Não foi por acaso que ele optou pelo Budismo Soto Zen, que é o budismo do aqui e do agora, do zazen. Ele sabe que essa escolha é uma resposta.




“Estudar budismo é estudar a si próprio.
Estudar a si próprio é esquecer de si próprio.
Esquecer de si próprio é estar uno com todas as coisas.”
(Mestre Dogen, patriarca que introduziu o Budismo Soto Zen no Japão no século XIII)

Dou espaço para outras palavras desse aprendiz de si mesmo:  
“Sabe quando você não espera por uma coisa e, de repente, se dá conta de que é mais simples do que imagina e é tudo o que você precisava? A minha vida ficou bem melhor!”

Mas nem tudo é tão bonito assim. É preciso ter perseverança. Faço Zazen por 30 minutos diariamente e continuo tendo vários incômodos no corpo e na mente. Um dia, você não sente incômodo algum. Aí, pensa: “Consegui, não vou sentir mais dor.” No dia seguinte, lá vem ela.

Resumo da história: as percepções vão mudando, as dores também e cada dia é como se fosse um novo começo. Como, aliás, deve ser.”


Digo apenas: “Au revoir, Descartes!” Para mim, a lógica do mundo não consegue explicar sozinha o que experiências como as do Zé revelam. Elas são uma opção pelo caminho que leva ao centro do Ser, lá, onde brotam as respostas que mais importam. Uma amiga me disse que, no budismo, um grande desafio é romper a escuridão fundamental. Estou certa de que a luz necessária vem de dentro. É ou não é, Zé?

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Vou cuidar do meu jardim

Ela disse que acordou de madrugada e, ainda com sono, meditou por um longo tempo. Depois, foi à cozinha preparar o café-da-manhã junto com todos os outros participantes. As mãos trabalharam muito e os lábios permaneceram em silêncio respeitoso. Na hora da refeição, o silêncio foi quebrado pelo mastigar dos afoitos, o que a incomodou um pouco. O dia seguiu sem pausas e a próxima tarefa foi cuidar da horta. Ali, de cócoras, ela se lembrou de que não seguiu o ritual de todas as manhãs e que o intestino já reclamava da posição. Não contou mais nada, porque as risadas não deram chance às palavras. Ela apenas ria do sufoco passado. Como risada é contagiante, também ri e não pensei mais no assunto.

Dias depois, eu cortava alho em fatias delicadas, quando pensei no quanto gosto do que é minucioso, do fazer sem pressa. Gosto de tarefas que poucos suportam. E agradeço se houver silêncio nessas horas. É porque “viajo”. Se há palavras, elas me atropelam. Então, estava ali, entregue ao pensar sem me concentrar – que é uma espécie de meditação – quando me lembrei do retiro no mosteiro zen, motivo dos risos da minha amiga. Pensei que adoraria preparar o café-da-manhã em silêncio após uma longa meditação. Então, veio a questão: será que eu sou zen?

Repassei o roteiro do dia no mosteiro e descobri que adoraria cuidar da horta, mexer com a terra, sujar as mãos, pisar no chão. Adoraria ficar um fim de semana sem carne, sem cerveja, sem excessos de qualquer espécie. Definitivamente, eu não pegaria carona com o casal que abandonou o retiro no dia seguinte à chegada. A partir desta constatação, fiquei chocada. Como é que eu nunca considerei isso relevante?

Encontrei algumas respostas. Uma delas é que preciso andar sozinha. Por isso, não me agreguei. Optei por fazer o meu caminho com meus próprios pés, com meus olhos, com minhas mãos, com meu coração, com meus erros e acertos. Não tenho tanto conhecimento suficiente para me manter sempre confiante, mas conto com os amigos e suas experiência. Também existem os livros, os filmes, os acasos, os pequenos milagres, existe um universo de possibilidades. Então, falo, leio, vejo, ouço e, na hora de escolher, confio em mim. Preciso dessa espécie de fé, cuja metáfora mais cabível é de dar asas a quem salta no abismo do desconhecido. Isso me conforta.

Canto mantra se o entendo, leio a Bíblia se me agrada, rezo um Pai Nosso quando a situação complica, tendo água benta, eu tomo, faço novena se for preciso, repito palavras mágicas jurando que acredito. E se a questão era ser ou não ser, encontrei minha resposta: sou e não sou. Agora, com licença, porque, como disse o Cândido, de Voltaire: "isso está certo, mas devemos cultivar nosso jardim".

domingo, 22 de novembro de 2009

Eu vou pro céu

O primeiro pensamento que tive sobre os limites da vida foi alarmante. Eu tinha uns seis anos. Nessa época, gostava de ficar ao lado da minha mãe enquanto ela costurava. Ela instalava-se numa espécie de varanda e eu um pouco adiante, do lado de fora. Deitava-me no chão fresco e os meus pensamentos iam tão longe quanto o voo dos pássaros – urubus, diga-se de passagem – que eu adorava observar. Às vezes, fazia perguntas difíceis, tipo: "Onde termina o céu?" Esta pergunta vem ao caso, porque minha mãe respondeu que o céu não tinha fim. Eu duvidei. Então, olhei fixamente para o alto e resolvi descobrir. Pensei no que haveria depois das nuvens, depois do ponto mais alto que um urubu chegou, depois do azul, depois do sol e da lua e, quando cheguei no depois do depois, fiquei apavorada. Não havia nada que pudesse ser colocado ali, a não ser o escuro. Com o coração disparado, voltei meus olhos para o chão.

E foi no chão que, em outra ocasião, eu observava formigas e, num insight, pensei que, para elas, o universo era o meu quintal. Elas não tinham como saber que havia uma rua lá fora, que havia um bairro, uma cidade, um país, um mundo. Ela só conseguia enxergar o percurso do formigueiro à árvore. E se o quintal era o universo, o ser humano era o deus das formigas. Nós decidíamos se elas viveriam ou não. Nós poderíamos por o pé na frente de uma delas e impedir o avanço. Nós poderíamos dar-lhes alimento. Foi assustador, porque me veio a tese de que Deus poderia esquecer-se de nós, da mesma maneira como 99,99% das vezes nos esquecemos das formigas. A síntese desse pensamento foi um sentimento de abandono. Não quis mais brincar. Hoje eu sei que essa brincadeira tem um nome: chama-se filosofar.

Recentemente, o marido de uma amiga, vendo uma formiga que avançava sobre a mesa da cozinha, pego-a e, ao invés de matá-la, lançou-a do outro lado do muro, na rua. E disse algo como: “Se eu mato a formiga, acabo com a história. Mas se jogo para bem longe, dou-lhe a chance de outra vida.” Achei hilário pensar em como seria a próxima encarnação da formiga. Será que ela se lembraria que um dia habitou a mesa farta de uma cozinha? Será que ela avançaria em alguma escala espiritual?

Não tenho respostas. Aliás, a falta de respostas para estas questões é algo bem típico. O dia em que perguntei à minha mãe: “Se Deus criou o mundo, quem criou Deus?” Ela até tentou explicar, mas eu jamais consegui entender. Confesso que ainda me sufoco se começo a pensar na solidão de Deus, esse filho único de não se sabe quem – e não falo de Jesus, falo de Deus mesmo –, o soberano que brinca solitário com suas formiguinhas por toda a eternidade (palavra que também não me cabe).

Sei que não é bem assim. Mas sei também que as respostas que li nos livros de Deus e dos homens ainda não me satisfazem. O velho testamento, por exemplo, traz um Deus tão cruel que eu não aguento. O meu ser católico arrepia-se inteiro e encolho-me de medo. Como sei que isso não é justo, busco outras linhas para me inspirar. Leio um pouco de tudo. Quando li Nietzsche, encantou-me a coragem de dizer que, em troca de uma vida eterna, morre-se muitas vezes antes de viver. De fato, matar um querer, por culpa, é dizer não ao desejo de expansão da alma. Saramago também me surpreende. No livro Caim, ele resolveu se rebelar contra o Deus do antigo testamento e concluiu: «a história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele». 

É por essas e outras que, às vezes, paro tudo e olho para o céu. Ocasião em que penso na vida e na desimportância dos meus sofrimentos, penso nos prazeres e no dia em que vou viver plenamente, penso que, se não alcançamos os limites do mundo, se não entendemos a presença de Deus, se não podemos compreender o intangível universo existencial, viver deve ser mais simples. Esse é o meu jeito de ir para o céu.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

No final, tem graça

Começa sempre assim: a gente não está muito legal e inventa umas fórmulas para ficar bem. Às vezes dá certo. Outras não. Mas isso não é algo que faça os crédulos perderem a calma. No mínimo, a experiência rende boas risadas.

Quem se aventura pelo esotérico acaba rindo – com ou sem graça. Tomar banho com ervas, por exemplo, pode ter duplo efeito: a gente lava a alma e suja o box. Usar sal grosso dá no mesmo com o acréscimo do do-in que as pedrinhas fazem nos pés, um bônus precioso para quem se liga. Meditar usando incenso novo é sufoco na certa. Nós, os incautos, nunca acertamos a distância ideal de primeira. Montar o mapa dos sonhos pode virar pesadelo. E se o namorado resolve mostrar para os amigos? Aconteceu comigo e o pior foi que, entre os sonhos tinha uma tal de barriga tanquinho.

Às vezes, a experiência sobra para os vizinhos. Há um ano, uma amiga, seguindo o conselho de uma profissional, resolveu defumar a casa. O ritual não era nada simples. Envolvia dispor vasilhas com enxofre em vários cômodos, botar fogo e ficar de lá para cá, acompanhando o ritmo. Não tentem fazer isso em casa. A experiência foi um suplício. No início, tudo bem. Aí, a fumaça foi aumentando, tomando conta e ela, circulando desorientada sem poder respirar direito. Ficou tão fedido e enfumaçado, que a alternativa foi abrir as janelas e apagar tudo. Pode ser que tenha sortido algum efeito, porque ela ria muito ao contar o caso.

Existem também alguns tropeços. Eu, por exemplo, estava dançando descalça num gramado suspeito, tropecei e cai. Pelo menos a trilha era perfeita, uma música new age para aliviar as tensões. Jurei para a turma inspirada que eu estava bem, mas machuquei o braço. Ficou roxo alguns dias. Tudo bem, roxo é a cor do sexto chakra. Zen também.

A primeira vez que participei de uma reunião budista foi insuportavelmente hilária. Estava acompanhada de um amigo bem-intencionado, mas descontrolado. Chegamos atrasados e escolhemos um lugar discreto, como fazem os iniciantes. As pessoas começaram o Daimoku. Estranhei aquele murmúrio, era como um coral repetindo centenas de vezes a mesma frase – em japonês! Só se ouvia "Nam myoho rengue kyo, Nam myoho rengue kyo, Nam myoho rengue kyo..." David, meu amigo, ficou paralisado, encolheu os ombros e virou o rosto para o outro lado. Estranhei. Puxei minha cadeira para trás e, então, vi que o rosto dele estava muito vermelho. Ele fazia um enorme sacrifício para não soltar uma gargalhada. Então, não aguentei. Perdi a pose.

Assim seguimos. Vamos sempre confiantes enfrentar o próximo desafio. O propósito é ficar bem na foto e acredito que, na maioria das vezes, saimos sorrindo.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Um viver de fácil preparo

Fui recebendo alguns textos e guardando. Às vezes, leio e acho inspirador, penso que poderia colocar em prática. Poucas vezes o faço. Os textos são como receitas de um bom prato. Quase todos trazem ingredientes disponíveis no mercado e óbvios modos de preparo. Parece fácil. Um sorriso aqui, um pensamento bom ali e, assim, a vida teria um sabor diferente. É na hora de misturar os ingredientes que a dificuldade começa. Qual o ponto certo da atenção? Que tanto exato é uma pitada humor? E o gosto amargo da frustração, uma hora passa? Não ficou doce demais o meu afeto?

Aprendi a cozinhar errando. Claro, algumas vezes acertei de cara, mas quase sempre só dava para o consumo conformado. Hoje, com a coragem de ousar, misturada à tradição familiar, até que me dou bem. Se a culinária fosse como a vida, bastaria entender que preciso da minha experiência e do meu histórico para que a receita faça sentido e para que eu saiba a hora de parar de mexer.

Quando leio alguns textos, penso em manter o fogo baixo e ir cozinhando os velhos hábitos, enquanto preparo a novidade para o meu cardápio. Preciso desse tempero. Algumas vezes, parece perda de tempo investir num banho demorado, quando o trabalho pede urgência. Então, eu me pergunto: “O que vale mais?” Não tenho dúvidas e, se questiono, é só para afirmar as novas respostas. O coração em paz vale mais. Sempre.

Vou testando. Se não der certo, pelo menos a vida terá um gosto diferente e mais charme. Porque, definitivamente, a estética também vale. Para quem quiser experimentar, seguem algumas receitas rápidas, colhidas ao acaso, naqueles textos que recebo.

Para abençoar
Devia ser para a casa. O texto dizia para fazer uma água de cheiro com rosas, ervas e frutas da preferência, aspergir pela casa e mentalizar coisas boas. Minha experiência indicou um modo mais simples: fervo tudo e curto o aroma. No hora do banho, jogo da nuca para baixo. A casa toda fica cheirosa e eu... deixa pra lá.

Desobstruir caminhos
Varrer a casa com ramos de hortelã. Passar pelos cantos. Também pode-se fazer um chá bem forte e passar pano na casa, indo dos fundos para a rua. Aspergir essência de hortelã na casa. Hortelá é bom também para desobstruir o organismo. Mudei tudo. Achei um exagero varrer a casa com raminhos de hortelã. Então, fiz um chá bem forte e tomei. O que sobrou, coloquei no frasco próprio e perfumei a casa. Juro que me senti mais em paz. E ainda tive o bônus do sabor.

Mais equilibrio e calma
Fazer pausa de 10 minutos a cada 2 horas de trabalho.
Dizer não sem culpa.
Concentrar-se em uma tarefa de cada vez.
Ainda não aprendi o segredo. É comparável a fazer suflê. Sai do forno bonitinho e depois murcha.

Por hoje é só. Como o propósito aqui é contar as experiências neste caminho meio zen, meio humorado, continuo atenta ao que recebo. E vou contando tudo. Ao contrário de alguns chefs, que sempre guardam um segredo – o pulo do gato – eu revelo. Conto até o que não deu certo. Quem sabe alguém me dá uma dica?

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Era pra rir?

Acontece muitas vezes. Estou ali, trabalhando, atenta a outros textos e mensagens e eis que chega uma assim, desavisada. Às vezes, o título desperta a curiosidade e lá vou eu... Faço uma pausa, abro o arquivo – geralmente do PowerPoint – e viajo numa sequência de imagens de flores em close, rios de outro mundo, árvores no outono, estradas instigantes, gotas na pétala de uma rosa, pôr-do-sol em tons nunca vistos, abelhas com as anteninhas cheias de pólen...

Como o mundo em perspectiva poética é lindo! E a música? Essa também tem lá suas facetas. Enya ganha no ranking. Eu gosto. E muito. Portanto, a quem me envia este tipo de mensagem, digo que não me incomodam de jeito nenhum. Até porque, quando estou ocupada, não leio e pronto. E como gosto das imagens e do som, muitas vezes, vou passando e lendo como quem não lê. Ocorre que ler sem ler é uma armadilha.

Outro dia, recebi uma mensagem de pessoa muito querida e, diga-se de passagem, instruída. Abri. Logo começou a música. Gostei. As imagens eram bem anos 60 e 70. Meio batidas, mas vá lá... Nesse ritmo, fui lendo. Meu parecer final foi: “mais ou menos”. Voltei ao trabalho. Mas algo ficou me incomodando. Li o texto novamente e achei as pragas que me picaram: nostalgia extrema e idolatria de uma época. O Ministério da Cultura – ou da Educação – deveria advertir: Apego cega.

Será, meu Deus, que algum dia eu serei como aquele cara? Será que ele não vê que, com o intuito de mostrar quão grandioso foi o seu percurso ou época (?), no final das contas, mostrou desajuste e indignação? Será que eu corro o risco de me acorrentar ao passado a ponto de não enxergar os erros cometidos pela minha geração nem os acertos da geração seguinte? Tomara que não, porque, por mais bonito que seja qualquer movimento, há erros. E por pior que se apresente o cenário, há avanços. Eu vejo isso em toda parte.

Não quero envelhecer gastando o lápis cor-de-rosa para pintar o passado e o preto para o presente. Quero a caixa de lápis completa. Quero todos os verdes para colorir essa gente honesta que inaugura um novo pensamento, mais humano e ecológico. Quero usar os azuis para pintar aqueles que mudam os horizontes com muito respeito. Quero os amarelos para aqueles que, como girassóis, buscam a luz e não os aspectos sombrios da existência. Quero laranja para desenhar a autoconsciência e a percepção de que o prazer é a realização do potencial de vida. Quero todas as cores disponíveis. Até o preto, eventualmente, porque é preciso ver o que ainda pode mudar. A minha visão de futuro é colorida e mantenho a escolha. Seguirei traçando com minhas convicções e, com meus sonhos, o arco-íris da minha vida.

Quero envelhecer digna dos meus anos e do afeto pelo humano. Quero ir além do respeito, da admiração, do reconhecimento. Quero amor. E tem muita gente que sabe do que eu estou falando, gente que também está buscando outras palavras para traduzir o viver feliz e digno. Quero estar no ritmo do agora. E pensar o bonito.

Deixo aqui algumas frases a título de exorcismo:
- Nascer nos anos 50 foi uma barra. Essa geração chegou ao mundo para mudar TODOS os conceitos de VÁRIAS gerações

- Não existem mais velhos como antigamente.

- As avós eram umas velhinhas e hoje uma mulher de 40, 50 anos é um mulherão.

- Para as pessoas de mais de 40 anos, palhaço era o Carequinha. Hoje O POVO INTEIRO é meio palhaço.

- O Brasil FEDE.

- A ÚNICA música do Beatles a tocar é "Help".

Tem mais: ele dizia que casar era pra sempre, que as certezas duravam a vida toda, que tatuagem era coisa de criminoso e finalizava pedindo para parar o Brasil que os caras com mais de 50 anos querem descer. Espero que ele não esteja falando sério... Oh, somente agora eu me atentei para um fato: e se fosse para rir?

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Como morrer de inveja em 344 páginas

Pelo título e pela resenha, eu devia imaginar qual seria o meu sentimento ao final da leitura. Mas tantas pessoas gostaram, riram, sentiram-se inspiradas e me indicaram, que resolvi ler o livro Comer, rezar, amar. Trata-se do relato da escritora Elizabeth Gilmore de suas experiências numa viagem de um ano pela Itália, Índia e Indonésia. Diz a resenha que a moça queria explorar a arte do prazer na Itália, a arte da devoção na Índia, e, na Indonésia, a arte de equilibrar as duas coisas. Pois ela conseguiu mais: o livro tornou-se um sucesso mundial. Foram vendidos mais de 4 milhões de exemplares em 30 países. Não é pouca coisa, o que amplificou o meu referido sentimento.

Do que falo? De inveja. Pura e simples. Como é que pode? A moça consegue sair de um casamento chato, consegue que uma editora banque sua viagem, segue na companhia de um italiano simpático,  aprende italiano em 4 meses, engorda 11 quilos de tanto comer bem e fica feliz mesmo assim. Na passagem pela Índia, medita durante não sei quantas horas, emagrece todos os quilos a mais e, por fim, chega na Indonésia lindinha, onde um xamã maluco vai auxiliá-la na arte do equilíbrio. De quebra, namora um brasileiro gente boa e arrecada não sei quantos mil dólares para uma amiga. Consegue tudo isso e ainda milhões de leitores interessados em saber como. Não dá inveja?

Se ela tinha a intenção de inspirar revoluções existenciais, se queria somente escrever um querido diário, se queria uma graninha a mais ou apenas indicar caminhos para encontros legais, considero tudo válido. Cada leitor sabe de si e do que o inspira ou motiva. Cada escritor também. E, como eu ando querendo ser mais compassiva e mais zen – muito antes de ler tal livro –, digo apenas que ele deveria ter outro título. Por exemplo, o título desta postagem.

Pausa para reflexão...  Não, esse título não dá. Quem é que se interessaria? Ela foi esperta. É melhor deixar os pobres incautos pensarem que vão aprender a conjugar com perfeição os verbos comer, rezar, amar. Deixa pra lá... Não morri de inveja e desse mal eu não morro. Fecho com Nietzsche: “O que não provoca minha morte faz com que eu fique mais forte.”

domingo, 11 de outubro de 2009

Zen e as formigas

Lá ia eu com passo apressado, temendo chegar atrasada ao compromisso. Ia pensando nos argumentos para a conversa, no preço a cobrar pelo serviço, entre outras coisas. Não perco tempo. Ando e trabalho.

Eis que – ôpa! – quase pisei numa fila de formigas. “Oh, lá vão elas apressadas.” O pensamento ia descambar nessa viagem, mas eu não tinha e não tenho tempo a perder. Numa atitude até um pouco zen, pulei a fila, livrei do aniquilamento dezenas de formigas e fui descendo a ladeira. Cem metros abaixo, irritei-me com minha pressa. A menina que fui não perderia de jeito nenhum a chance de observar a movimentação das formigas. Agora não, a pressa acabou com a poesia.

Duas horas depois, estava de volta. E as formiguinhas lá, na incessante tarefa de levar uma carga com duas ou três vezes o seu tamanho. Parei para vê-las. Resolvi reinstalar a poesia e a calma no meu dia. Que mal teria perder uns minutos?

Parei e observei. A fila seguia agitada. Duas formigas se encontraram  – "será que elas conversam?". Na entrada do formigueiro, nenhum tumulto. Como são disciplinadas! Giravam o corpinho de formiga e entravam de ré, deixando a folha para fora. Depois, com competência, arrastavam-na para dentro. E vieram formigas, refazendo o caminho em direção a outras folhas.

– “Mas o que é isso?”
Passado o susto, ainda proferi uma palavra antes de dar as costas:
– "Malditas!"
Ao acompanhar o trajeto em direção às folhas, vi o enorme estrago das formigas na árvore mais linda da minha rua. É uma árvore pequenina, mas dá flor.  Perdi o humor e fui embora praguejando.

Antes de abrir o portão, olhei para trás, vi a árvore, notei que ela resistiria perfeitamente ao ataque e não pude evitar uma gargalhada. Que ironia eu querer ser zen e não dar conta de ser humorada. Então, me pergunto:
– “Iêda, cadê a poesia?”

domingo, 4 de outubro de 2009

Búzios sem charme

As mãos envelhecidas mexiam e remexiam os pequenos búzios numa lógica que só ele entendia. Por fim, após alguns segundos, começaram as perguntas: “É casada? Tem filhos? Qual é o seu trabalho?” De início, ela respondeu. Mas foi ficando incomodada. Afinal, viera ali com um intuito apenas: saber se faria uma longa viagem. E dava para supeitar que o senhor buscava, digamos, inspiração para a consulta.

Como não estava disposta a perder tempo e muito menos o dinheiro investido, questionou:
– “Olha, se fosse para falar do que já sei, eu não teria vindo aqui. O que eu quero saber é se o senhor está vendo alguma viagem aí.”
Irritado, ele respondeu que ela precisava saber esperar. Ainda assim, jogou os búzios novamente e disse que não via nenhuma viagem nos próximos meses. E prosseguiu falando banalidades que, definitivamente, não a interessavam.  Foi demais para ela, que disse:
– “Eu não estou gostando nada disso. Até duvido...” 

Péssima escolha. Nem acabara a frase e a peneira voou pelos ares. Se ela era esquentada, ele era mais. Com um movimento apenas, levantou-se e foi logo mandando-a para fora.

Depois do susto, ela dispara:
– “É, faz isso mesmo. Mas saiba que a mim o senhor não engana!”
Perdido o respeito, veio o medo. Então, só restava pegar o dinheiro – que ainda estava sobre a mesa – e ir embora.

Eu, do lado de fora, ouvia apenas as vozes exaltadas e pensava:
– “Nossa, esse moço deve ser o máximo!”
Foi quando a vi saindo ligeira para o quintal. Vinha correndo em minha direção e eu só entendi a última palavra:
– “Rápido!”

Sem entender nada, quis saber o que aconteceu.
– “Esse picareta não sabe de nada. Vamos embora. Rápido!”
Mas ela não esperava pela minha resposta:
– “Eu não. Eu vou ficar.” 
Nervosa, continuou andando e só completou:
– “Você é uma besta mesmo!”

Besta ou não, fiquei. Não sei se por respeito ao senhor ou em consideração à amiga muito querida que o indicou. Quando entrei no cômodo, ele estava calmo, mas não quis jogar os búzios para mim de imediato. Primeiro, olharia o jogo da minha irmã. Disse que a viagem não se concretizaria, mas que ela podia ficar tranquila, uma outra viagem estava prevista e bem melhor. Depois, jogou para mim. Ocorre que, a essa altura, eu já duvidava de tudo. Nem prestei atenção.

Quando contei à minha irmã o que ele disse, ela deu uma gargalhada de descaso. Final da história: a viagem realmente não se concretizou e depois veio outra muito melhor. Precisava ter perdido o charme? Até hoje, ela jura que sim. E lá se vão mais de 20 anos...

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Cartas na mesa

Há algum tempo, eu estava assim, assim, sem saber o que fazer da vida, se metia os pés pelas mãos ou se dava um novo passo, se virava a última gota ou entornava o caldo... Para não perder o rumo, resolvi arriscar na sorte e marquei consulta com uma taróloga. 

O que eu buscava? Uma solução? Claro que não. Em sã consciência, ninguém acredita mesmo em previsões. Elas são úteis apenas para que saibamos no que queremos acreditar. Já é de grande ajuda.

A primeira frase foi: “O que você anda perdendo?” E a consulta foi por aí, ela tentando me dar uma luz e eu cada vez mais perdida. Dizia: "conhece alguém em cargo de poder? Essa pessoa pode te ajudar.” É claro. Todo mundo sabe que um amigo em cargo de poder pode ajudar. Mas ele precisa querer, né?

Sai de lá com duas coisas a menos: dinheiro e paciência. Mas tudo bem, fui direto tomar cerveja com duas amigas. Porque, às vezes, copos na mesa funcionam mais do que cartas. O rei virou piada.

Horas depois, peguei um táxi, paguei, entrei em casa e a pergunta da moça me voltou:
– O que você anda perdendo?
– Oh, meu Deus!
Corri até a bolsa, olhei, olhei de novo e nada. A carteira havia caido no táxi e o motorista já estava longe. Com ele, foram-se alguns trocados, cartões de crédito, documentos e o humor que me restava.

Demorou quase um mês para que eu retirasse todos os documentos, recebesse novos cartões de crédito e comprasse uma carteira tão bacana quanto a que a minha irmã havia me presenteado uma semana antes da sessão de tarot. Foram horas e horas de filas e andanças.

Então, descobri o que estava perdendo: meu tempo.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

A casa bagunçada

O ano já ia pelo meio e nada decolava. Aliás, só o namorado (o que não foi tão ruim assim). A saúde exigia cuidados, o melhor trabalho foi cancelado, o dinheiro ficou escasso... Nem reza brava adiantava. Uma amiga, vendo a situação inglória, indicou-me uma consultora de feng shui. Por que não? “Pior do que está, não pode ficar” – foi o que pensei.

Mas ficou. Já na entrada, a moça não gostou da minha casa. A porta principal era numa diagonal impensável, a disposição dos móveis impedia a circulação da energia (ch’i), áreas importantes do ba-guá simplesmente não existiam na planta rabiscada diante dos meus olhos incrédulos.

Uma semana depois, ela voltou com o diagnóstico definitivo e boas notícias. Eu podia resolver o problema da entrada, bastava usar – eu e todo mundo – a porta da cozinha, levar a geladeira para a área de serviço (só não sabia o que fazer com a máquina de lavar), pendurar um sino de vento na janela da sala, afixar hexagramas nos armários, encher uma taça d’água e colocar ao lado da cama com três pedrinhas... A lista era imensa.

Eu cumpri quase todas as tarefas, porque sou boa nisso. E esperei. Não sentada, porque cansa. Continuei trabalhando, criando, acreditando e, principalmente, entrando pela porta de serviço.

Um mês, dois meses, três... E alguma coisa começou a mudar. Não, muitas coisas mudaram. Comecei a ficar com raiva toda vez que entrava pela porta da cozinha. Comecei a me irritar com o barulho dos sinos. Enchi o saco de trocar a água das pedrinhas. E o sal grosso na sala de visitas, que esqueci de mencionar, transformou-se em obrigação de limpeza. Essa não!

Sou crédula, mas não sou boba. Resolvi conferir o  diagnóstico, fiz outras consultas na internet e era isso mesmo. A profissional tinha sido competente na análise. O que fazer? Mudar de casa? Não mesmo! Sentei-me um dia no centro da sala, respirei fundo, fechei os olhos e pensei no que me faria bem. Meia hora depois, eu já sabia.

Voltei alguns móveis para o lugar de origem, retirei outros, passei com passo firme pela porta da frente, deixei a geladeira na cozinha, coloquei o sino do lado de fora, comprei flores frescas para a sala, dei lugar para plantas, aromatizei a casa, abri as janelas, iluminei meu espaço, espalhei fotos pelos cômodos... Era como se eu mandasse um recado pra sorte (ou azar, sei lá!): “Quem ocupa este espaço sou eu e vou em frente.” Fui.

Mentira. Estou indo. Só que, agora, bem-acompanhada, com disposição, otimismo e coisa e tal. Só falta um detalhe: alguém aí conhece técnicas para ganhar muito dinheiro que não seja muuuuiiiito trabalho e que não bagunce a minha casa?

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Por uma gota

Hoje, 21 anos depois de abandonar o ofício de cigana, sinto-me quase em paz com os meus pedaços – ou papéis. Vai chegar uma hora em que direi para mim: “Agora, sossega. Está tudo aí, a menina, a estudante, a cigana, a publicitária, a namorada, a andante sem rumo...” Dizer isso e não ter medo das consequências, porque, definitivamente, só assim eu serei inteira. E grande.

Consciente disso e na tentativa de perceber todas as evidências, outro dia, resolvi voltar aos florais. Sim, eu tomo floral de tempos em tempos. O que é outra história. E já que eu tenho tempo, vou contar.

Comecei numa época louca, de muito trabalho, muita animação, amigos em volta, natação todo dia, meditação e, como pano de fundo, um desejo de definição. Isso atormentava. Então, quis sair do forward e apertar o pause. Indicaram-me um profissional chamado Marcos Guião. Achei o máximo. Quem não acharia? O aumentativo dava o maior poder ao cara.

Não sei bem porque o procurei, já que sua especialidade era fitoterapia. Mas foi ele, sim, quem me receitou o primeiro floral. Não me lembro das essências da fórmula, apenas de uma: Impatiens glandulifera. Todo mundo que eu conheço – que toma floral – já se defrontou com essa essência, indicada para os irritáveis, inquietos, intolerantes, frustrados e tensos com situações que não ocorrem na velocidade que gostariam e como gostariam. Parece feio, mas todo mundo tem dessas coisas (Ok, isso eu aprendi outro dia mesmo).

O final do meu primeiro vidro de floral foi trágico. Impaciente como estava, comecei a implicar com as 4 gotas 4 vezes ao dia. Estando o vidro com um pouco menos da metade, num momento mais afobado, virei o gargalo e tomei num gole só. Depois, esperei por um fenômeno como do marinheiro Popeye, esperei uma apoteose, esperei que, num efeito potencializado, eu me tornasse uma Super-Iêda. É, eu disse que foi trágico e foi mesmo. Ser ridícula é uma tragédia.

Não sou mais assim, tá bom? Tenho muitas horas de terapia. Já tomei vidros e vidros de florais, gota por gota. Agora, quando percebo um descompasso, paro, sinto, pesquiso nas vísceras, nos sonhos, na fala e mando aviar minha própria receita. Claro, eu prescrevo. Dá certo.

O último tem nove essências. E estar escrevendo aqui é sinal de que funcionou. Jamais me exporia tanto se não fosse a Mimosa Puddica, uma essência indicada para “aflorar os aspectos da alma relativos à coragem e à confiança, a virtude oposta ao medo, a fé que o indivíduo precisa cultivar” (copiei daqui). Eu acredito e acho lindo. É o meu sossego numa gota...

Minha história com floral é essa. É claro que não acredito que resolveu a minha vida, mas acho que a tornou, no mínino, mais pausada. Cada vez que pingo uma gota, o meu pensamento vai para mim. E esta é a mágica: eu entro em foco!

Por fim, confesso: quando a dor aperta, tomo Neosaldina. E não se fala mais nisso.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Minha vida cigana

Quando foi que tudo começou? Quando foi que eu comecei a me interessar pelas questões existenciais – e porque não dizer, místicas? Quando trouxe simpatias para a minha vida e quis adivinhar o que haveria na próxima esquina? Difícil saber. Lembro-me de um tempo zen em que tudo era mais simples. Pode ser que não conte, porque eu era uma menina. Só que uma menina com cara de cigana – foi o que me disseram. Para fazer jus à semelhança, li uma matéria sobre quiromancia. Nunca mais me esqueci do significado de cada linha.

Anos mais tarde, descobri que essa lembrança poderia me render algum charme e – porque não dizer? – dinheiro. Foi uma época profícua. Li muitas mãos no botequim que frequentava após as aulas na faculdade. Não contava para ninguém que tudo era inventado – era isso que eu pensava –, mas sempre dizia, num tom sério e cheio de mistério: é brincadeira.

Com o diploma na mão e sem emprego, profissionalizei a cigana. Primeiro, num restaurante natural, frequentado por pessoas muito bacanas e, na minha opinião, muito zen – o Mandala. Achava, com razão, que seriam mais simpáticas ao meu ofício. Foram. Vestida de cigana estilizada, li centenas de mãos.

Depois, fui para o La Taberna, um bar de inspiração espanhola onde havia apresentação de dança flamenca. Ali, eu podia cobrar caro e cobrava. Mas o que mais me encantou foi a dança. Naquele ambiente, eu era uma cigana. Queria dançar, falar aquela língua, vestir aquelas roupas, soltar aquele grito. Então alguém me disse: “Tem que fazer despacho, agradecer a cigana que te acompanha.” O grito foi outro: Credo!

Assim, chegamos ao final e ao aspecto menos charmoso: o medo. Lidar com o desconhecido dá medo. Além do mais, eu pensava: “E se tudo for um blefe? E se alguém não gostar?” Isso jamais aconteceu. Mas a possibilidade estava lá. O pior era ser procurada por pessoas que eu não imaginava de onde iam surgindo. O telefone não parava e quase virei uma orientadora espiritual. Nada a ver com meu potencial. Fui salva por Maria, que se divertia como minha agente. Era ela quem dizia para os insistentes que eu estava num retiro espiritual. Foi o fim.

Retomei as rédeas da minha vida, rezei um Pai Nosso e um Ave Maria pra cigana e me tornei redatora. Nunca mais li uma mão seriamente. E nem adianta pedir. Leio uma linha aqui, outra ali, escondo alguma coisa, deixo pra depois... Por quê? Sei lá. Para mim, basta o jeito de cigana. Não acredito muito nessa história de linhas que desenham uma vida. Mas, cá pra nós, é como a história das bruxas: que elas existem, existem.

Para se aventurar por outras linhas, clique aqui

Múltiplas escolhas

Sou católica. Sobretudo, sou curiosa. Por isso, já frequentei centro espírita, reunião budista, vou à missa... A minha questão é de múltipla escolha. Dou as caras aqui, ali e vou trazendo um pouco de cada experiência. Das escolhas que fiz, o maior mico foi na umbanda.

Fui chamada por um amigo querido, o Arnaldo. Ele afirmou com tanta ênfase o valor de uma consulta com o Sete Trancas que eu deixei de lado o medo e aceitei o convite. O lugar era estranho e ainda tive que esperar bastante para ser atendida. Na hora da consulta, um conselho apenas e dito com braveza: “A moça tem que estudar”. Então tá...

Mas a experiência não acaba aí. Havia todo um ritual a que eu deveria assistir. Estranhei o cheiro, a movimentação, o aparato, não sabia o significado de nada e achei melhor sair. Fui para fora, me postei ao lado da porta, até que uma moça simpática veio me conduzir de volta. Segundo ela, a pior escolha era ficar ali.

Voltei e comecei a achar interessante o ritual. Moças vestidas de branco, dança, colares, cantoria, tambores... De repente, um alarido: “Odara baixou!”. E eu pensando: “Meu Deus, o que é isso?” Era homem e era Odara. Dançava, girava, recebia flores, champagne, bons tratos. Todos queriam uma rosa de Odara. Todos não. Encolhida no meu assento, não ousava olhar pra frente. Ela rodava e entregava rosas. Por fim, restou uma e um gole de champagne. Eu só queria saber por que aquela gente queria tanto a rosa. Pensava nisso, olhando para os lados. Eu não estava ali.

Mas – céus! – lá vinha ela. Não era possível. Para mim não, para mim não... Era. Recusei com o sorriso de quem recusa canapé em final da festa. “Ooooohhh”, foi a resposta da platéia. Arnaldo me salvou, dizendo para eu ficar com a rosa. Fiquei, mas recusei o champagne.

No final, esperei todos sairem e entreguei a rosa para uma moça de branco, pedindo que colocasse no altar. Pelo susto dela, percebi a heresia. Estava feito. A caminho de casa, fui informada que a rosa era um patuá poderoso. Tarde demais.

Dias depois, um amigo, vindo de Salvador, falava comigo quando, de repente, começou a falar mais grosso. Era ele, mas não era. Se é que vocês me entendem. Ele foi logo dizendo que eu não tinha de me meter com o que não conhecia. Finalizou: “A ignorância foi o seu pecado”. Recado dado. E mico bem-pago.