quarta-feira, 11 de março de 2015

Passageiro

Tem dia que acontece. É sem aviso, nem mesmo uma intuição na véspera indica o que virá. Mas vem. Ao abrir os olhos, a primeira suspeita: não há aquele ânimo costumeiro. O corpo se encolhe, as mãos puxam novamente o lençol e o rosto procura o abrigo-esconderijo do travesseiro. Nenhuma vontade de sair. Mas hoje eu não podia aquietar-me, não podia esperar, em deliciosa sonolência, o vazio ser preenchido com algo mais risível. Então, sem vontade, vou.

Debaixo do chuveiro, a primeira surpresa: o prazer de sentir a água não é ignorado, ela lava o corpo e o perfume sossega a alma. Deixo-me levar pelo aroma delicado do sabonete líquido reservado para os piores dias. A espuma desce, a água acalma.

Nenhuma palavra de bom dia. Tudo bem. Silêncio é bom. Café com leite no ponto certo, queijo fresco e com pouco sal, pão australiano com cheiro de mel, manteiga... Quem pode perder o apetite com uma mesa dessas? Nada de dieta, nada de colesterol alto, saúde boa... E dá-lhe mais uma fatia deliciosamente coberta de manteiga

Faço tudo rápido no trabalho. E dá certo. Na cozinha, não me animo a cantar. Devia ouvir um mantra, mas me esqueço, embalada pelo ritmo louco do fogo, forno, óleo na panela, alho, carne ao vinho, aroma que vem e me leva. Cozinhar me absorve e eu vou testando pitadas diferentes no mesmo prato. Vira outro. Na estufa, acaba rápido. Sim, deu tudo certo.

Olho para a minha roupa ao voltar para casa. Tão sem enfeites, tão sem cor, tão preto e branco, e eu sem batom, sem cacho de cabelo no rosto, sem brinco... Desarrumada não é a palavra. Talvez simplória. Mas o espelho revela outra coisa: a pele limpa tem um brilho bonito. Brilho. Hoje sou eu e não a roupa. Estranho, não era bem isso que eu imaginava.

O dia ainda não acabou e sei que seguirá o curso imprevisível do cotidiano. Sei que problemas se resolvem, que a vida passa, que nada é trágico e que dias como esses destinam-se a ficar esquecidos em algum canto da memória, que não é claro, nem escuro. Esta quarta será apenas mais um dia em que venci a preguiça e o tédio. E, à noite, vou comer pipoca, ler um livro de poemas e colocar palavras mais bonitas no diário imaginário.