sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Eu vi a vida

Ia seguindo para uma caminhada em volta da Barragem Santa Lúcia, quando vi o homem. Parei para ver. Ele e outros mais distantes cortavam o capim que tomava conta de um terreno público no começo da Av. Arthur Bernardes. Esse homem estava muito bem protegido com botas, caneleiras de couro, capacete, protetor para o rosto e macacão de brim. Fui acometida por uma onda de ternura: “Que bom que alguém cuidou deste ser”. Então, como se ouvisse o meu pensamento, ele desligou o cortador, levantou o protetor do rosto e enxugou o suor. Vi o seu braço subir, os músculos movendo-se, a pele negra brilhando. O gesto deu-lhe uma dignidade comovente. Senti orgulho pelo trabalho daquele homem. A força dos seus braços estava sendo fundamental para deixar um pequeno pedaço de mundo mais bonito. Sorri em agradecimento. Ele não viu, mas deve ter sentido, porque voltou a cortar o capim numa postura soberana. Segui com a alegria de quem viu a vida de verdade.

No final da ladeira, senti o vento no rosto e respirei fundo para absorver a beleza. Definitivamente, eu estava uma Iêda melhor. Atravessei a rua e comecei a girar em passos largos em torno da lagoa. Então, vi uma garça branquíssima em voo rasante sobre a água barrenta. Belo contraste. No meu i-pod ouvi Tom Jobim declarar: “Minha bem-amada, estrela pura aparecida, eu te amo e te proclamo o meu amor, o meu amor.” A palavra amor expandiu-se no meu peito e tomou conta do ambiente.

As árvores estavam maiores e eu ainda não havia reparado. Que verde! Como eu pude passar por ali todos esses dias sem notar a diversidade de tons e a variedade das formas? Arvorezinha arredondada, árvore comprida, árvores enfeitadas. No meu giro, eu vi as árvores.

As músicas se sucediam e eu assistia a gente que passava. Cada pessoa com um passo, um balanço, uma história. O enfermeiro parou e enxugou a baba que descia pelo queixo do velho na cadeira de rodas. O velho não abaixou o rosto ao me ver passar. Ele apenas babava, apenas resistia a uma fatalidade. Fiquei mais humana pela falta de vergonha daquele homem. E Marisa Monte pedia: “Speak low, when you speak love. Our summer day withers away, too soon, too soon..." O universo conspira.

Diminui o passo, lembrando da tendinite patelar, mas quando Gal Costa gritou: “Brasil, mostra a tua cara, quero ver quem paga pra gente ficar assim...” eu quase corri. A cada batida, eu abria e fechava as mãos, sentia a pulsação, meu coração, a emoção da palavra, o ritmo da música e acelerava o passo.

Eu segui e vi uma dona limpinha. Ela ia para o Morro do Papagaio e carregava uma sacola de loja, muito bem conservada, que servia de bolsa. Vestia uma blusa estampada com flores azuis sobre fundo claro e uma calça da cor de beterraba. Figurino insólito e lindo. O cabelo era branco, o passo lento, os olhos aguados, como se as lágrimas fossem irromper a qualquer instante. Mas ela não chorava. Ela é forte. Vi que seus ombros que não se curvaram para o tempo. Então, a minha simpatia se liquifez em duas lágrimas.

Cinquenta minutos se passaram. Eu queria mais uma volta. Algo acontecia, era preciso sustentar a mágica. Alonguei os músculos, aliviei o esforço e parti para outra. Aí, busquei no i-pod uma música que combinasse com a suavidade do momento. Pulei umas cinco e tive um insight: “Estou alterando o futuro”. Na descida, não ouviria mais Bee Gees com o lamento de “How Can You Mend a Broken Heart”. Mas, talvez, não tenha sido por acaso. Falar de coração partido não tinha nada a ver com meu dia. Eu estava inteira.

A primeira música suave que achei foi Wild Child, de Enya. Parei por aí. Tinha de ser:
Ever close your eyes
Ever stop and listen       
Ever feel alive   
And you’ve nothing missing
You don’t need a reason   
Let the day go on and on.   

Feche seus olhos,
Pare e escute,
Sinta-se vivo
E você não estará deixando escapar nada.
Você não precisa de uma razão,
Deixe o dia prosseguir...*
(*) Não fui eu quem traduziu, tá? Reclamações com o mestre Google.

Eu não andava mais, flutuava. Fechava os olhos e respirava, me desfazendo em deslumbramento. Ao final da volta, olhei para o grande círculo onde eu havia girado e imaginei que ninguém ali teria um dia ruim, só porque eu queria. Imaginei que o homem que dormia no banco, tão sem rumo, teria um lugar para ir. Imaginei que esse lugar teria um coração e, se não tivesse, que ele se sentisse tocado pelo meu. E chorei pelo desconhecido alvo do meu afeto.

Ao subir a ladeira da minha rua, ouvia Synéad O’Connor cantando Don't cry for me Argentina: 
“They are illusions
They are not the solutions they promised to be
The answer was here all the time
I love you and hope you love me..."
Foi quando vi Rogério descendo em minha direção. Ia abrir os braços e correr ao seu encontro, mas fiquei com vergonha da cena novelesca e apenas levantei a mão direita num aceno amoroso.

Acontece que tomei uma xícara de chá de alecrim ao sair de casa. E vi a vida com outros olhos. Ainda tem gente que diz que um simples chá não muda nada.