A moça estendeu o braço e acenou para a mulher que passava do outro lado da rua. O gesto queria dizer alguma coisa, como: "estou te vendo". Mas o sorriso que se somou ao aceno disse mais: " Que bom te ver!" E o afeto era correspondido. E elas passaram. E o tempo passou. Eu passei. Mas a imagem fixou-se renitente, como uma música que a gente canta um dia inteiro, mesmo sem querer. Comecei a pensar na forma como passamos e como a vida passa. Agora mesmo, penso nisso.
Não, não me refiro ao meu andar ou ao andar da mulher lá do outro lado da rua. Não me refiro ao adeuzinho corriqueiro remetido ao esquecimento. Refiro-me ao passar que deixa marcas, deixa lembranças, deixa registros, como fotos, restos, ruinas e sinais da vida que passou. A humanidade vai seguindo e deixando rastros.
Latas de extrato de tomate somam-se a latas de leite condensado. O papel que limpou o suor carrega a gota seca que revela o esforço, que também passou. A camisa suja de batom, o fio de cabelo e a cama desarrumada. A marca no colchão também fica. Fica a marca da mão que errou o interruptor e foi deixando na parede um tom sobre tom. No alto da cabeceira, permanecerá a marca da cabeça que se encostou, enquanto o homem relia um poema de Drumond ou o Kaputt, de Curzio Malaparte, histórias vividas e inventadas. Num canto do armário, fica a camisa com o colarinho manchado e o sapato gasto pelos pés do morto. Nos trajes, ficam rastros do corpo que não ficou. Vão se as horas, a vivência, o sabor e o suor, vão se os homens e as casas, ficam marcas que o tempo apaga.
Mas não apenas isso. Cismo em acreditar e colocar em evidência outras lembranças, outros sinais e memórias que dão vida, mesmo depois que se passa. Um livro escrito, o DNA e a educação em um filho, os frutos na árvore que se plantou... E, se isso não bastar ou for difícil, ficam os sinais da delicadeza, do bom gosto, do trabalho, do respeito e da gentileza.
Grandes torres gêmeas e até muralhas caem, Wall Street despenca, o mundo entra em colapso, mas as grandezas sutis ficam. Os rastros do belo não se consomem com o tempo. Como memória de alguma humanidade, ficarão os gestos sem importância, como o tropeço e a pedra que o menino carregava nas retinas fatigadas e virou poema, como a mão que a moça não tirou e o toque carinhoso que veio. Se, no fundo dos nossos baús, houver registros de emoção verdadeira, a vida terá sido realmente vivida. Se nos rastros deixados, houver gestos de amor, ela terá sido bela. Agora, a mulher passa e acena.
Viver não se trata da última gota. Trata-se de gota após gota, após gota.
Não, não me refiro ao meu andar ou ao andar da mulher lá do outro lado da rua. Não me refiro ao adeuzinho corriqueiro remetido ao esquecimento. Refiro-me ao passar que deixa marcas, deixa lembranças, deixa registros, como fotos, restos, ruinas e sinais da vida que passou. A humanidade vai seguindo e deixando rastros.
Latas de extrato de tomate somam-se a latas de leite condensado. O papel que limpou o suor carrega a gota seca que revela o esforço, que também passou. A camisa suja de batom, o fio de cabelo e a cama desarrumada. A marca no colchão também fica. Fica a marca da mão que errou o interruptor e foi deixando na parede um tom sobre tom. No alto da cabeceira, permanecerá a marca da cabeça que se encostou, enquanto o homem relia um poema de Drumond ou o Kaputt, de Curzio Malaparte, histórias vividas e inventadas. Num canto do armário, fica a camisa com o colarinho manchado e o sapato gasto pelos pés do morto. Nos trajes, ficam rastros do corpo que não ficou. Vão se as horas, a vivência, o sabor e o suor, vão se os homens e as casas, ficam marcas que o tempo apaga.
Mas não apenas isso. Cismo em acreditar e colocar em evidência outras lembranças, outros sinais e memórias que dão vida, mesmo depois que se passa. Um livro escrito, o DNA e a educação em um filho, os frutos na árvore que se plantou... E, se isso não bastar ou for difícil, ficam os sinais da delicadeza, do bom gosto, do trabalho, do respeito e da gentileza.
Grandes torres gêmeas e até muralhas caem, Wall Street despenca, o mundo entra em colapso, mas as grandezas sutis ficam. Os rastros do belo não se consomem com o tempo. Como memória de alguma humanidade, ficarão os gestos sem importância, como o tropeço e a pedra que o menino carregava nas retinas fatigadas e virou poema, como a mão que a moça não tirou e o toque carinhoso que veio. Se, no fundo dos nossos baús, houver registros de emoção verdadeira, a vida terá sido realmente vivida. Se nos rastros deixados, houver gestos de amor, ela terá sido bela. Agora, a mulher passa e acena.
Viver não se trata da última gota. Trata-se de gota após gota, após gota.