terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

O abraço que faltou

A tristeza foi sem tamanho e me pegou como um soco no estômago. Eu estava ali, circulando pela casa, concentrada na pequenez gostosa de afazeres que pouco importam, como molhar uma planta já úmida, limpar a poeira de um canto que não habito, jogar ervas secas na água quente e ficar ali, admirando o chá tomar cor. Na verdade, eu apenas adiava a hora do trabalho, buscava inspiração nesse nada. E estava feliz com tanto bem-estar sem causa.

Então, fui trabalhar. Primeiro, uma olhada nos e-mails, procedimento inevitável. Então, uma mensagem me levou a um blog e este a outro e outro. É como andar por ruas desconhecidas de uma grande cidade, a gente vai seguindo encantada, descuidada, olhando detalhes, não se concentrando em nada... Só que a grande cidade, aqui, é o mundo. Então eu vi. Vi com estes olhos de choro fácil o que evitei todos esses dias. Vi com o espanto que nocauteia os desavisados o que sempre evito para não sofrer mais do que o suportável. Vi a menina de olhos incrédulos me encarando do outro lado da tela. Eu vi a flor que deveria estar presa nos cabelos cair sobre a testa em desenfeite. Vi a sutileza em meio a miséria. Vi a beleza maculada pelo trágico. Vi a boca pequena entreaberta como se nos lábios calasse um pedido ou uma prece. Eu vi a foto das meninas e, na sequência, mais umas vinte imagens do Haiti.

Porque eu não parei de olhar? Porque eu devia isso às meninas. Olhar o que elas viram era a minha maneira de remediar a culpa. Não, a culpa não era do mundo, era de Deus. Eu tive vergonha por Deus. Por Deus, eu olhei o corpo esquecido na avenida. Como filha de Deus, eu olhei cada destroço, cada rosto, cada morto, como se o meu olhar fosse a piedade que não houve. Deus teve piedade pelos meus olhos.

Como é que eu, logo eu, que sei de mim, fui olhar aquelas fotos? Eu não posso olhar a vida tão de perto. A dor do outro dói demais em mim. E doeu o profundamente triste.

Num último olhar carinhoso para aquelas meninas, percebi o motivo maior da minha tristeza: foi saber que o fotógrafo, feita a foto, não as abraçou. Talvez ele precise mesmo do distanciamento para dar conta do seu trabalho. Então, meninas, recebam agora o abraço que faltou.

 
Moradores da favela de Cité Soleil – Porto Príncipe – HAITI – 22/01/2010. FOTO: JONNE RORIZ/AE