Uma mulher anda por Copacabana em estado de graça. Vê tudo e ama. Segue tão enlevada que chega ao carinho extremo de se sentir a mãe de Deus. E se justifica, dizendo que não há nisso nenhuma prepotência ou glória, já que o “carinho por um filho não o reduz, até o alarga.”
Ia seguindo nessa beleza de amar, quando quase pisa num rato morto. Acabou-se. Toda trêmula, confessa que a grosseria de Deus a insulta. E mais: “Minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada.”
Faz-me rir este conto de Clarice Lispector. Não, ele faz mais: causa-me uma cegueira momentânea, como acontece quando há o choque de um clarão muito grande após a escuridão. Fico tonta, tateando minhas convicções. Depois eu me questiono. Depois eu me calo. Depois eu me vejo. Depois eu me deixo.
Acontece isto com a gente o tempo todo: sucedem-se semanas de calmaria, a vida vai fluindo fácil como rio raso, então, do nada, vem a sombra, o susto, o desconforto ou o medo implacável. A gente tende a se sentir ridícula ou decepcionada diante de uma felicidade tão frágil. Mas não precisa ser assim. A vida inteira é que se torna grande. Inteira assim, com os pequenos – como tenho dito –, com as chatices, com os compromissos inadiáveis, com os riscos, com os ríspidos, com os sustos, com os choques, com os mornos, com os gelados, com os pontos sem nós e com os nós apertados... É a soma que insere sabedoria na história.
O conto de Clarice chama-se Perdoando Deus. Confesso que eu também já fui tentada a responsabilizar Deus por uma decepção e ficar brava com o fato. Só que, ao invés de perdoá-lo, eu pedia perdão. Clarice amou mais. Colocou-se diante d’Ele – respeito maiúsculo – e perguntou: “Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho da minha natureza?”
Lembrei-me deste conto, porque ontem estava regando violetas no canto claro do banheiro, cheia de ternura e calma. Então, pressenti um movimento. Olhei para baixo e pronto, num átimo, mandei vaso, caneco cheio d’água e elegância para o alto, dei um berro, pulei dois metros e levei dois minutos para respirar aliviada. Ela era mínima, mas era uma lagartixa. O fato foi mínimo, mas, senti o desconforto do escândalo e o ridículo da revolta sem causa.
Então, tal qual Clarice, eu me pergunto: Como assim? Eu estava feliz e fui provocada. Ridícula sou eu? Então não era motivo para um acerto de contas? Foi ridícula a ternura, a intervenção ou meu asco? Paro por aqui. Estou aprendendo a pensar o inteiro e concluo que não teve nada de ridículo, nem mesmo o pavor, sinal das ligações atávicas com as cavernas. Nem mesmo o desapontamento, sinal de sangue nas veias. Nem mesmo o perdão, sinal de que sei rir de mim. E ainda cito ela:
“Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes.”
Com licença que vou matar o mosquito que me picou, ver o pôr-do-sol e falar com Deus.